Documentário foca os anos de chumbo no Ceará
O documentarista Felipe Barroso promove mais um mergulho na história do Ceará. Depois de dirigir o média-metragem “A Padaria Espiritual” (2006), documentário sobre o grupo de escritores cearenses do final do século XIX, ele prepara, agora, o lançamento de
Publicado 04/03/2008 16:44 | Editado 04/03/2020 16:36
Você ficou conhecido na cena cultural local com o documentário “A Padaria Espiritual”. Sua ligação com a literatura é confirmada pela autoria de diversos contos. Como a política apareceu entre seus interesses como criador?
Sempre que nos expressamos, fazemos algum tipo de manifestação política. Pode parecer clichê, mas muita gente ainda não entende isso. O documentário sobre a Padaria Espiritual (2006) revela, como este ´Subversivos´, minha admiração pelos transgressores, pelos que não se deixam levar pela grande onda, pelos que se insurgem contra o ´establishment´. Os padeiros eram artistas que tentaram quebrar valores e padrões estéticos europeus, vigentes na época, muitas vezes com bom humor, a começar pelo seu programa de instalação. Já o ´Subversivos´ é mais denso, mais ´pesado´, pois enfoca um período da nossa história recente que deixou e ainda deixa muitas marcas no nosso povo. Sinto isso na pele, como professor universitário, quando tento conversar com meus alunos, por exemplo, sobre o poder Legislativo e as peripécias de seus integrantes. Raros são os que sabem o que é um deputado federal e para que ele serve. Parecem apartados dos acontecimentos do nosso país, do nosso tempo. E olha que estamos falando de pessoas com razoável poder aquisitivo, que se alimentam três vezes ao dia e que têm educação formal, há, no mínimo, dez anos com a bunda sentada em bancos escolares, ouvindo horas e horas de falatório, ora aproveitável, ora inútil.
Há alguma ligação pessoal com o contexto dos embates políticos durante o período da Ditadura Militar?
Nasci em 1963 e, portanto, não tinha idade para compreender e participar dos embates da época. Mas sou sobrinho do advogado Pádua Barroso, que se notabilizou também pela defesa incansável dos perseguidos políticos, juntamente com a advogada Wanda Rita Sidou, já falecida. Minha tia Ester Barroso e seu marido também foram perseguidos e, por isso, vivenciei, de certa forma, esses dramas. Meus pais tiveram e têm esse viés social, e me ensinaram a olhar com indignação as situações de injustiça, que o Brasil é tão pródigo. Na Faculdade de Direito, o convívio com colegas e as leituras aguçaram meu interesse.
Qual o período coberto pelo documentário? Qual a justificativa deste recorte temporal?
´Subversivos´ é um vídeo-documentário que dura 120 minutos e abrange o período iniciado em 1964, ano do golpe militar no Brasil, e se estende até 1979, quando veio a anistia. Para alguns, o vídeo pode parecer longo, mas não tive muita escolha. Afinal de contas, durante quase quatro anos, entrevistei 21 pessoas sobre um período que durou quinze anos e que marcou e marcará muitas gerações. O vídeo faz esta abordagem inédita, onde cearenses (exceto um), que vivenciaram o regime militar, falam deste momento sob a óptica local, mas não traz nada de bairrismo. Ao contrário, grande parte dos países da América Latina enfrentou ditadura militar nos idos de 60 e 70. E seus dramas se assemelham. Achei suas histórias muito boas e vi que não devia podá-las muito, para tentar encolher o documentário em apenas uma hora, digamos. Como se diz, a obra adquiriu vida, cresceu, tomou forma própria e vamos ver no que dá. E, mesmo com as duas horas, ainda deixei muita coisa boa de fora, viu?
No documentário você não dá voz apenas aos ex-militantes da esquerda, mas também a quadros mais conservadores da sociedade. Qual o critério da escolha das fontes?
Pois é, tentei ouvir os representantes de todas as áreas envolvidas. Tive a sorte de entrevistar o juiz militar Ângelo Rattacaso Jr. (falecido em 2004), que participou de boa parte dos julgamentos de subversivos aqui do Ceará. Lá vemos o advogado dos perseguidos políticos, o ex-governador do Ceará na época, o militar que apoiou o movimento, além de jornalistas de vertentes políticas bem distintas. Digna de menção, a participação de dom Aloísio Lorscheider (dentre meus entrevistados, o único que não era cearense), que falou sobre seus anos em Fortaleza, das visitas aos presos políticos no IPPS e de investigações que sofreu durante o regime. A participação da Igreja também é destacada no depoimento da educadora Nildes Alencar, irmã de frei Tito (que se suicidou na França, por causa das pesadas torturas e alucinações). Mas a ênfase do documentário é nos relatos dos próprios perseguidos políticos, que foram presos, torturados, cassados, exilados. Uns curtiram anos e anos de prisão no Brasil, outros conseguiram escapar e viver no Chile, Canadá, Alemanha, sem previsão de retorno.
Com freqüência, o criador de não-ficção é surpreendido por seu tema. Que descobertas mais o tocaram durante o processo de feitura do vídeo?
Por se tratar de uma obra longa e trabalhosa, tive meus momentos de desânimo. Passei meses sem fazer uma entrevista e, por vezes, não sabia bem como arrematar o documentário. Daí se confirma, mais uma vez, que boa parte da criação é feita mesmo na ilha de edição. Rascunhei um roteiro, que não tem absolutamente nada a ver com o que está aí montado. Você passa horas, dias assistindo e revendo o copião, com imagens e falas na cabeça, pensando em como conectá-las, como melhor aproveitá-las, sem descuidar do ritmo. As histórias sobre tortura e exílio me causaram especial impacto. É de impressionar o grau de desumanidade dos torturadores e, por outro lado, o despojamento dos perseguidos políticos; muitos tiveram que deixar tudo aqui, escola, familiares, empregos. Este despojamento, de certa forma, permanece e surpreende, quando raramente demonstram ódio pelos que lhes causaram tanta dor.
Você citou sua pesquisa no Arquivo Nacional (RJ). E no Ceará, como se deu a pesquisa? Você recorreu à imprensa?
Estive duas vezes no Arquivo Nacional, de onde trouxe dezenas de fotos e mais de uma hora de filmetes da época. No Ceará, encontrei a boa vontade das pessoas, a disposição em colaborar, com exceção de alguns policiais federais, por razões óbvias. Alguns perseguidos políticos também se recusaram a falar, na tentativa de deixar enterrados lá atrás episódios que não querem rememorar. Como documentarista, tenho que respeitar, claro. E vale destacar o descuido do estado em relação à nossa memória. Mais uma vez, reforça-se a tese do prof. Gilmar de Carvalho, que aqui é a ´terra do não-tem-mais´. Tinha, mas não tem mais (risos)… O nosso Museu da Imagem e do Som (MIS) é muito limitado, em termos de fotografias, por exemplo. O acervo da época é muito ralo e mal organizado, e olha que estamos falando de coisa recente! Quando eu quis pagar pelas poucas fotos selecionadas, pediram-me que eu doasse luvas para manusear fotografias… O descaso do estado também contribuindo para o perfeito alheamento em relação à nossa história, nós que continuamos sem conhecer nosso passado, sem saber o que fomos. Por isso, desprezamos e depredamos. Em termos de jornais, recorri mais às matérias que constam nos processos judiciais da época. Neste caso, minhas principais fontes foram a Associação Anistia 64-68 e meu tio, o advogado Pádua Barroso, a quem agradeço. O jornal ´O Povo´ também gentilmente me abriu os arquivos.
E sobre o financiamento do documentário?
O mérito maior é da Universidade de Fortaleza, onde ensino. Sem demora, minha proposta foi acolhida pela professora Christine Betty, então coordenadora do curso de Comunicação Social, e apoiada pela professora Helena Cláudia Santos, da TV Unifor. Estúdio, equipamentos, pessoal, veículo, tudo obtido sem maior dificuldade, e por isso sou grato. Café Santa Clara foi o outro grande apoiador, cujo apoio financeiro me permitiu finalizar o filme. E quero destacar, sem pudor, que submeti o projeto deste documentário ao DocTV III (Ministério da Cultura, 2006), ao VI Edital de Cinema e Vídeo (Secretaria da Cultura/CE, 2007) e ao Programa BNB de Cultura (2008), e em nenhum deles foi aprovado. Revelo isso lá nos créditos finais, porque esta política de apoio estatal precisa ser revista. Escolhem, por vezes, projetos que acabam não sendo realizados e outros de qualidade muito ruim. Não é rancor; é irresignação. Claro que há também muita coisa boa. Não obstante tais falhas, o Ceará tem feito bonito aqui e lá fora, em termos de audiovisual. E essas iniciativas devem ser aplaudidas e incentivadas. E eu cuidei de me cercar de bons profissionais, todos daqui, como Valdo Siqueira (diretor de fotografia), Aldemir Rocha, o Mimi (trilha original) e Márcio Ramos (videografismo). Mas há de se ter mais cuidado com projetos bonitos que não resultam em nada. Outra coisa, em termos de financiamento público, é a questão da ´burrocracia´, que desanima e atordoa o artista realizador. Certo que é necessário critério, muito critério, no uso do dinheiro público, mas é inacreditável a quantidade de exigências e o desencontro de informações, por parte do estado. Acredite que, dia desses, me pediram, da Secult, roteiro e ficha técnica do meu documentário ´A Padaria Espiritual´, um dos vencedores do IV Prêmio Ceará de Cinema e Vídeo, finalizado e exibido em 2006, do qual já prestei contas há mais de ano! Mas sei que o secretário da Cultura, professor Auto Filho, quer sanar tais problemas, para fortalecer o audiovisual cearense, que gera renda e que revela nossos talentos e nossa cara, aqui e lá fora.
Fonte: DN