Um anjo teimoso chamado Renzo Rossi

O padre italiano Renzo Rossi teve forte atuação ajudando presos políticos brasileiros de esquerda durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), morreu nesta segunda-feira (25), em Florença, na Itália. O religioso faleceu aos 87 anos em consequência de um câncer de pâncreas. Já doente, em 1997, Renzo deixou o Brasil e retornou para o país natal. O portal EcoDesenvolvimento.org entrevistou o padre em uma de suas visitas ao Brasil. 

Para conhecer um pouco da história desde distinto homem, reproduzimos abaixo à integra da entrevista.

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O padre Renzo Rossi, de 85 anos, nasceu em Florença, na Itália, em 31 de agosto de 1925. Filho de Atílio Rossi, um socialista que ganhava a vida como lixeiro, e da empregada doméstica Ethel Paolini Rossi, ele e os outros três irmãos passaram muitas dificuldades na infância, quando muitas vezes a batata e o feijão eram os únicos alimentos. Carne? Só uma vez por ano.

Renzo Rossi tornou-se padre ao completar 23 anos. O sonho de ajudar as pessoas mais pobres em outra região do mundo fez com que ele viesse morar no Brasil em 1965. Estabelecido em Salvador, Bahia, o missionário foi procurado por familiares do preso político Benjamim Ferreira de Souza, que estava detido na Penitenciária Lemos Brito. A partir daquele momento, a trajetória de padre Renzo sofreria uma reviravolta: ele passou a visitar os inúmeros porões da ditadura militar (1964-1985) em todo o Brasil, com o objetivo de oferecer conforto espiritual aos presos políticos e familiares.

Padre Renzo voltou a morar na Itália no início dos anos 2000, mas costuma visitar o Brasil a cada biênio. Recentemente, ele esteve aqui no país para comemorar 85 anos de vida e participar de eventos referentes aos 31 anos da Lei de Anistia. Além de estar registrada no livro As Asas Invisíveis do Padre Renzo (editora Casa Amarela), de autoria de Emiliano José, a história de Padre Renzo também está no documentário italiano Un Angelo Testardo (Um Anjo Teimoso), dirigido por Benedetto Ferrara. 

EcoD: O que o motivou a vir trabalhar no Brasil?

Renzo Rossi: Eu sempre quis estar entre os mais pobres. Durante a juventude, eu estive muitas vezes junto aos operários italianos nas fábricas, participando das lutas deles, até mesmo quando faziam greves de fome. Então já na década de 1960, o papa Paulo VI fez um apelo porque estavam faltando padres na África, na Ásia e na América Latina. Bem, eu sou de Florença, uma região da Itália que não tinha nenhuma abertura prática ao mundo fora de Florença, então isso tocou-me profundamente. Em um primeiro momento, eu poderia ser mandado para a Índia ou Tanzânia, mas faltavam mais padres no Brasil. Cheguei no Brasil em 29 de outubro de 1965, e na Bahia em 6 de novembro do mesmo ano para trabalhar com as comunidades de São Caetano e Fazenda Grande (bairros de Salvador).

Qual foi o cenário que o senhor encontrou?

Muita miséria. Só para se ter ideia, praticamente todas as casas eram de taipa. Era justamente o que eu imaginava. Mas atuar em uma situação como aquela era justamente o que eu queria. Era o desejo da diocese, era o desejo de Deus, e era também o meu desejo: viver em meio aos mais pobres. O objetivo não era resolver todos os problemas, mas sim ouvir o povo, conhecer as necessidades das pessoas, a fim de ajudá-las a supri-las, porque os pobres têm a capacidade de fazer a própria história.

E quando a realidade dos presos políticos começa a fazer parte da vida de padre Renzo?

Eu deveria retornar a Itália em 1970, cinco anos depois de minha chegada ao Brasil, para uma espécie de prestação de contas. Inicialmente, o Brasil já vivia em uma ditadura, eu sabia da existência dos presos políticos, mas ainda não sabia de toda a problemática envolvida. Ocorre que o padre Giorgio Callegari foi preso juntamente com os freis Betto e Tito no presídio Tiradentes, em São Paulo. Uma vez na Itália, eu pedi autorização aos meus superiores para visitá-lo quando retornasse ao Brasil. O objetivo era saber qual era a situação dele para informar a família. Autorizado, eu acabei me entrosando com os demais presos, acompanhando as outras realidades. Aquele momento, que era para ser uma simples visita a um amigo, mudou a minha vida. Mais do que estar ao lado das pessoas mais pobres, eu passei a conviver de perto com aqueles que lutam por um mundo mais justo e mais fraterno.

Mas depois desse episódio de Giorgio Callegari o senhor só passaria a fazer visitas frequentes em 1975. Por que esse intervalo?

Eu vivi essa problemática nos quatro anos seguintes, mas deixei-a meio de lado, e não tive mais oportunidades, até porque era difícil visitar presos políticos em plena ditadura. Então, em 1975 foi preso Benjamim Ferreira de Souza. Ele era um amigo do grupo de jovens católicos da Capelinha de São Caetano. A mãe dele, dona Ida, e uma das tias me procuraram desesperadas, porque sabiam que ele estava preso, mas desconheciam o local. Aí eu obtive a informação de que ele estava preso na penitenciária Lemos Brito, onde já havia sido inclusive torturado. Chegando lá, eu fui saudá-lo, em nome da família dele, uma vez que os familiares não podiam visitar os presos políticos. Consequentemente, conheci outros presos, como Teodomiro Romeiro dos Santos, Paulo Pontes, Emiliano José, e por aí vai.

Como funcionavam essas visitas?

Essa pergunta é interessante, porque a maioria dos presos políticos não tinha vínculo com a Igreja Católica, portanto, eles não queriam saber de missas ou sermões improvisados, nem esta era a minha proposta. Eles precisavam de um amigo com o qual pudessem desabafar. Eu oferecia-lhes meu ouvido, muitas vezes sem falar nada, acompanhando o sofrimento deles. Visitei ao todo 14 presídios em todo o Brasil: 10 masculinos e 4 femininos. É que depois da Lemos Brito, em Salvador, espalhou-se a notícia de que havia um padre, no caso, um maluco como eu (risos), que visitava os presos tratando-lhes como amigos.

Em quais condições físicas e psicológicas os presos se apresentavam no momento das visitas?

Variava muito. Confesso que não lembro muito bem, porque já faz mais de 30 anos. Mas o que eu nunca esqueci foi a serenidade deles. De modo geral, eles não se queixavam das torturas. Eles expressavam certo orgulho de estar sofrendo por uma causa justa, importante para o país. Eu sabia que, muitas vezes, eles acabavam de passar por momentos terríveis, no entanto, minha missão era de confortá-los.

Os militares não suspeitavam de uma suposta ligação do senhor com os presos, levando-se em conta os inúmeros presídios visitados, a facilidade para chegar até eles e a própria militância de alguns padres que se opuseram a ditadura, a exemplo dos freis Betto e Tito?

Em um primeiro momento, acredito que sim. Para visitar os presos políticos eu contava com uma declaração assinada pelo então arcebispo de Salvador, o cardeal Dom Avelar Brandão Vilela. O documento era uma espécie de "salvo conduto". Cheguei a ouvir algumas indiretas de militares pelos corredores, mas não os temia. Confesso que era uma missão um tanto arriscada, mas o risco faz parte. Eu sempre vivi cada dia intensamente. Não me preocupava com o risco.

Embora Frei Betto tenha afirmado no prefácio do livro As Asas Invisíveis do Padre Renzo (editora Casa Amarela), de autoria de Emiliano José, que a missão do senhor não possuía cunho ideológico, é válido observar que o seu pai era socialista e que outros padres tiveram um considerável envolvimento na luta contra a ditadura militar no Brasil. Seu trabalho era teológico ou ideológico?

Meu pai não era um homem de atividade política. Era socialista sim, porque acreditava em um mundo mais justo e, naqueles tempos de fascismo, todos os que não concordavam com aquele regime eram socialistas escondidos. Frei Betto interpretou bem. Sempre fui um homem de abertura humana, mas sem me interessar por ideologias. Nunca fui socialista, nunca fui revolucionário no sentido concreto, mas aberto a todas vicissitudes do homem. Não me interessava se Teodomiro matou um soldado da Aeronáutica ou se outro preso estava detido em razão do que pensava em nível ideológico. Me interessava a pessoa humana.

O que foi que o senhor disse ao ser homenageado no Congresso, em Brasília, em razão dos 31 anos da Lei de Anistia?

Que eu, como padre, prefiro um marxista, um comunista que luta pela justiça e a liberdade, do que um católico praticante que vive fechado em si mesmo. O bem está na direita e na esquerda. O coração é criado por Deus para valorizar os aspectos bons. O ideal de liberdade e justiça são encontrados tanto nos católicos como naqueles que não são católicos.

Depois do período de abertura política, já na década de 1980, acabaram as visitas aos presídios. O que o senhor passou a fazer desde então?

Após visitar o último preso político em Fortaleza, em 1982, eu tornei a ficar próximo dos mais pobres. Em 1997 eu voltei a Itália para tratar um problema de saúde. Dois anos depois eu decidi ir para a África. Ajudei o povo carente de Moçambique, onde lecionei teologia no seminário São Pio X, em Maputo, até retornar para minha pátria-mãe em 2001.

Se arrepende de algo?

Não. Ao viver pelo próximo, vivo por mim também. Sou muito grato por tudo.

Fonte: Entrevista originalmente publicada no Portal EcoDesenvolvimento.org

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