Ex-soldado enterrou guerrilheiro do Araguaia
Reproduzo matéria de Vasconcelo Quadros Brasília publicada no Jornal do Brasil de 21 de janeiro de 2008.
Publicado 23/01/2008 14:20
Testemunha ocular e personagem da Guerrilha do Araguaia, o ex-soldado Lourivan Rodrigues de Carvalho rompe um silêncio de 35 anos para revelar em detalhes como morreu e onde foi enterrado à época um dos mais combativos ativistas do PC do B desaparecidos entre 1972 e 1975: o advogado baiano Demerval da Silva Pereira, o João Araguaia, cujo desaparecimento estava envolto em mistérios e versões contraditórias. Lotado entre janeiro a novembro de 1974 no 52º Batalhão de Infantaria de Selvas, em Marabá (PA), Lourivan era guarda da prisão montada pelo Exército na sede do antigo DNER em Marabá, um centro de tortura conhecido como Casa Azul.
– Ajudei a enterrá-lo – admite Lourivan, que se encontrava na cena quando outro militar, conhecido por soldado Bastos, disparou a rajada de Fuzil Automático Leve (FAL) que estraçalhou o corpo do guerrilheiro. O episódio teria ocorrido numa noite entre o final de agosto e início de setembro de 1974.
A versão do ex-recruta é parecida com o relato feito por moradores a pesquisadores e autoridades que estiveram na região. Por ela, o guerrilheiro teria sido morto depois de jogar uma caneca d'água num militar. O que não se sabia era quem foi o militar, a motivação dos disparos e nem o local onde o corpo havia sido enterrado. No mesmo terreno da Casa Azul, segundo as suspeitas, teriam sido enterrados outros guerrilheiros executados pelo Exército. Localizado pelo Jornal do Brasil, Lourivan relata o episódio com detalhes e diz que seria capaz de reconhecer a cova onde o corpo foi enterrado à época.
– Eu e o soldado Bastos cuidávamos da guarda. Por volta das 23 horas, o Araguaia começou a nos chamar. Depois, passou a pedir água. Era uma casa de madeira. Nós estávamos a uma distância de cinco a seis metros onde os presos se encontravam. Todos estavam algemados a correntes presas ao chão. O Bastos tinha receio, mas eu insisti que deveríamos levar água e acabei convencendo ele. Deixei o meu fuzil do lado de fora, encostado na parede, peguei uma caneca com água e entreguei ao preso. Ele apanhou e, de repente, ao mesmo tempo em que atirou a água no meu rosto, se jogou pra cima de mim. O Bastos estava a dois metros e, assim que me desviei, ele disparou. Foi uma rajada curta, de quatro ou cinco tiros. O preso caiu de lado, com o corpo arrebentado. Eu mesmo fiquei todo ensangüentado. Houve então uma grande correria para limpar o local- , relembra Lourivan.
Segundo o ex-soldado, os sentinelas mandados pelo comando do 52º BIS ao DNER normalmente não sabiam quem eram os presos. A função era montar guarda e tomar muito cuidado porque, segundo os avisos de superiores, eram presos perigosos. A ordem era era atirar em casos de tentativa de fuga. Lourivan afirma que nunca soube quem eram os outros três guerrilheiros. Diz que João Araguaia havia conseguido se desvencilhar de uma das correntes, a que estava presa à algema da mão esquerda e, aparentemente, tentaria dominá-lo. Ao se aproximar do guerrilheiro, a única arma que carregava era um punhal de sabre, enfiado na bainha e preso à cinta.
– Não havia explicação para o fato de ele ter se livrado de uma das algemas, mas uma das mãos estava solta, livre. Acho que ele também tinha consciência de que não teria chances de me dominar, mas tentou porque sabia que ia ser morto de qualquer maneira. Nós e eles sabíamos que quem estava lá seria morto. Isso a gente tinha certeza -, afirma o ex-soldado.
No período em que atuou como integrante da força auxiliar, Lourivan soube de histórias de guerrilheiros amarrados em sacos e jogados de helicóptero no meio da mata. Também viu uma guerrilheira sendo torturada na base de Xambioá, dentro de um jirau, com os braços esticados, recebendo durante horas incessantes, na cabeça, gotas que pingavam de um tonel cheio d'água. Nunca soube quem era.
O ex-soldado lembra que depois da morte de Araguaia houve alvoroço e uma grande correria para limpar o local e dar sumiço ao corpo.
– Carregamos ele até a margem do rio, abrimos uma cova e enterramos. Eu mesmo ajudei a cavar. Era uma cova rasa, no pé de um ingazeiro, mas com profundidade suficiente para enterrar bem o corpo. Depois que cobrimos e camuflamos a superfície. Um colega sugeriu que jogassem uns ramos verdes sobre a terra, para ajudar a disfarçar o local. Alguém cortou um galho de uma árvore próxima, mas acabou acertando uma casa de marimbondo. Foi uma correria. Quem não se jogou na água, como um cabo que a gente chamava de Galego, amanheceu com o rosto todo inchado das picadas, conta Lourivan.
Do movimento estudantil à luta armada no Araguaia
Bancário e esportista antes de se tornar dirigente do movimento estudantil como aluno da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia, o advogado Demerval da Silva Pereira, o João do Araguaia, foi um dos militantes que mais se identificaram com a luta armada organizada pelo PC do B na região do Araguaia. Seu destino era previsível.
– Ele era corajoso, decidido e dizia que se a luta não desse certo resistiria até ser morto – conta a ex-guerrilheira baiana Luzia Reis Ribeiro, que conviveu com Demerval no movimento estudantil de Salvador e depois no Araguaia, embora pertencessem a grupos diferentes.
– A versão do ex-soldado combina com a personalidade de Demerval. Ele sempre soube que pegaríamos em armas e estava disposto a dar a vida pela causa. Se referia à luta dizendo que era necessário pegar no pau furado – afirma Luzia.
João Araguaia pertenceu ao destacamento A e atuava na região conhecida à época por Fortaleza, no município de São João do Araguaia. Esteve presente nos principais confrontos entre a guerrilha e os militares: a tomada de um posto da PM na Transamazônica, em outubro de 1973 e, dias depois, no tiroteio que resultou na morte de quatro guerrilheiros, entre eles, o chefe do destacamento, André Grabóis, o Zé Carlos, filho do comandante geral da guerrilha e ex-deputado, Maurício Grabóis, e outros três ativistas de peso, João Gualberto Calatroni, o Zebão , Antônio Alfredo de Campos (morador recrutado pela guerrilha) e Divino Ferreira de Souza, o Nunes.
Demerval foi o único guerrilheiro que escapou da emboscada comandada pelo coronel Lício Augusto Ribeiro Maciel (que atualmente mora no Rio) naquele 13 de outubro. No dia 25 de dezembro de 1973, ele também estava com o grupo cercado pelas Forças Armadas na Serra das Andorinhas, onde a guerrilha sofreria as mais pesadas baixas.
O episódio, conhecido entre os militares como o Chafurdo de Natal, terminou na morte de Grabóis, de outros quatro dirigentes do PC do B e seria determinante na eliminação da guerrilha. Doente, magro, maltrapilho e portando uma metralhadora sem munição, João Araguaia teria sido preso na casa de um morador _ provavelmente delatado _ e, no final, levado para a Casa Azul, em Marabá. (V.Q.)