Milícias Indígenas?
A dialética nos ensina “que não há espaço vazio”. Assim, se o poder público não cumpre as suas atribuições, é mais do que natural que alguém ocupe esse espaço e assuma parcialmente suas atribuições. A organização das chamadas “milícias indígenas”, no alto Solimões, é um exemplo prático desse princípio teórico.
Publicado 30/11/2009 19:56
Mas não se limita a esse caso. Os exemplos são abundantes.
No plano doméstico não há como desconhecer o controle que as quadrilhas de marginais exercem na periferia da maioria das grandes cidades, como exemplo prático dessa aberração. Não raro o “policiamento” dessas áreas é exercido por quadrilhas de marginais, que passam a exercer o papel que o estado deixou de cumprir.
Na esfera internacional sempre que um país não zela pela sua integridade territorial e tampouco reafirma sua soberania nacional, outro país passa a exercê-la por ele. Ainda é muito forte, por exemplo, a lembrança do controle que os Estados Unidos da América e seu instrumento econômico – o FMI – exerceram sobre o Brasil durante o período de FHC.
Recentemente o jornal Folha de São Paulo publicou algumas matérias sobre uma suposta milícia indígena organizada na região do alto Solimões (Amazonas) na fronteira com a Colômbia (Letícia) e o Peru (Santa Rosa), com a finalidade de exercer o papel de polícia entre os “índios” Tikunas. Há informações de que outras etnias “copiaram” a experiência Tikuna.
O jornal se escandalizou ao descobrir que os 36 mil “índios” Tikunas da região organizaram a sua própria polícia, inclusive adotando a hierarquia convencional da estrutura policial brasileira: delegados, sargentos, etc.
Escandalizou-se ainda mais ao constatar que essas milícias são armadas com espingardas, uniformizadas, adotam rígida disciplina militar e aplicam corretivos nos seus “parentes”, como a rigor os índios se tratam entre si.
As espingardas são indispensáveis na selva amazônica, tanto para garantir o alimento oriundo das caçadas como para se defender de animais ferozes e, eventualmente, de algum intruso mais afoito. É como o laço para o vaqueiro ou a tarrafa para o pescador. Não é uma arma, é um instrumento de trabalho e de sobrevivência.
Como todos sabem, na Amazônia vivem centenas de etnias que falam línguas distintas. Além de não se entenderem entre si, eles passaram boa parte de sua história fazendo guerra uns contra os outros, o que explica porque só em raros momentos eles adotaram uma ação comum, como na resistência liderada pelo cacique Ajuricaba contra os portugueses.
Apesar das barreiras naturais essas etnias sobreviveram às inúmeras guerras tribais, aos incontáveis massacres dos diversos tipos de colonizadores e a uma política errática do estado brasileiro, que oscila entre a integração forçada e o isolacionismo.
Os massacres foram tanto de natureza religiosa – catequização forçada – quanto os de domínio territorial levados a cabo por portugueses, franceses, holandeses e posteriormente pelos próprios governos brasileiros provinciais. Não raro governadores da região organizaram e financiaram as chamadas expedições de extermínio, cuja remuneração aos expedicionários era feita mediante a quantidade de orelhas que apresentassem no balcão de pagamento.
Tanto a política de integração forçada como isolacionista tem limitações e equívocos.
A política de integração forçada, sem respeito aos valores culturais e econômicos dessas etnias, levou, a rigor, ao extermínio de milhões de nativos. Só onde a convivência foi harmoniosa e respeitosa ocorreu à salutar miscigenação que é a essência de nosso povo, o povo brasileiro.
E o isolacionismo se caracteriza, de um lado, pela ausência de políticas econômicas e sociais para as etnias já contatadas e com áreas demarcas e, do outro lado, pela proibição de contatar etnias ainda isoladas. Sem políticas públicas que possibilite a elevação do padrão social e econômico dessas etnias elas se converterão numa extravagância, na medida em que perderam seus usos e costumes tradicionais de sobrevivência e ainda não receberam o necessário apoio para viverem dentro do novo padrão econômico que lhes impuseram. A radicalização do isolacionismo se materializa na tese de não mais contatar as etnias isoladas. Apenas mapeá-las, observá-las e impedir que haja intercâmbio com os não índios, exceto os especialistas da FUNAI, como se fosse possível imaginar tal situação num mundo cada vez mais interligado.
Vejamos um exemplo prático dessa situação. Na Secretaria de Estado de Produção Rural (Sepror), que atualmente dirigimos, nós criamos uma Gerência de Agricultura Indígena e o primeiro Projeto de Agricultura Indígena do Amazonas. Contratamos Técnicos Agrícolas, todos índios, de diferentes etnias e o nosso órgão de assistência técnica (IDAM) fez o necessário treinamento em extensão a esses profissionais. O Banco do Brasil abriu uma linha de crédito específica para esse público alvo. Mas até o presente a FUNAI não autorizou a expedição de nenhuma DAP (Declaração de Aptidão ao Pronaf), documento sem o qual o produtor fica impedido de acessar o crédito bancário. Os técnicos mais experientes fizeram DAP para os índios como se fossem agricultores familiares – o que efetivamente são – mas os que não tiveram essa iniciativa até o presente não puderam atender nenhuma família.
A partir desses exemplos me parece que fica fácil entender porque os Tikunas resolveram montar a sua própria polícia. Simplesmente cansaram de esperar pelo estado.