“A Onda”: Mal estar da civilização
Retirado da história real do professor estadunidense William Ron Jones, filme do diretor alemão Dennis Gansel transfere sua experiência para a Alemanha atual e analisa o comportamento de um grupo de colegiais quando passa do estudo da Autocracia para o exercício do poder através da violência
Publicado 17/12/2009 19:35
No final de “A Onda”, do diretor alemão Dennis Gansel, o expectador tem a impressão de que algo perturbador está em curso na sociedade capitalista neoliberal. Uma experiência didática estruturada para conscientizar os alunos dos riscos da autocracia desperta neles os mais profundos instintos de ódio, violência e autoritarismo. A ponto de ele suspeitar que gesta dentro deles a semente nazifascista. E deixa o cinema ciente de que ela se desenvolve à sua volta, sem que ele a identifique. Na verdade, longe de ser apenas uma bem estruturada trama de ficção, o que ele acabou de assistir foi a experiência real do professor estadunidense William Ron Jones, que, na tentativa de realizar um laboratório com seus alunos, acabou desencadeando numa tragédia. Algo próximo ao que a autocracia provoca no grupo ou partido que dela faz uso para manter seu poder seja qual for o período.
No cinema isso se equivale a trazer a história para seu cotidiano de expectador. Com situações que o levem a ver-se dentro do filme e mergulhado na vida real. Coisa que Gansel e seu roteirista Peter Thorwarth fazem a partir do livro homônimo de Johnny Dawkins e Ron Bimbach, que relata o drama vivido de Ron Jones, na Califórnia em 1967. Eles transferem sua história dos EUA para a Alemanha atual, reunificada, e mudam seu nome para Rainer Wenger (Jurgen Vogel) e o cercam de colegiais de aparência comum, que enfrentam dilemas semelhantes ao de milhões de estudantes mundo afora. Ali estão Tim (Frederick Lau), tímido, deslocado de seu ambiente, o casal Marco (Max Riemelt)/ Karo (Jennifer Ulrich), em frequentes atritos com seus pais, e Kevin (Maximilian Mauff), rebelde, que não aceita as condições que lhes são impostas na sala de aula.
Mídia despolitiza a juventude atual
Nenhum deles vê saída para seus problemas no meio em que vivem. Inclusive o próprio colégio, com suas aulas enfadonhas, não os estimulam a ver para além de suas paredes. Em conversas com seus companheiros de classe mostram-se desiludidos, entregues ao desencanto e a falta de rumo. Não são impasses por eles criados, porém herdados da estrutura capitalista, centrada em seus tentáculos, a começar pela mídia que ao invés de dotá-los de conhecimento sobre a realidade circundante e seus responsáveis, os despolitiza e, desta forma, os desmobiliza. Numa roda de amigos Marco e Dennis (Jacob Matschenz) demonstram o quanto isto influi em sua visão de mundo. Marco indaga-se sobre o que fazer para mudar tal situação: “Contra o que a gente vai se revoltar hoje em dia? Parece que nada vale a pena”. Ao que Dennis retruca: “Esta é a marca de nossa geração”.
Esta seria supostamente a “geração do desencanto”, cujo em torno é ditado pelas vitrines dos shoppings, as fachadas dos fast foods, os sons metálicos dos dancings, regados a compridos e nuvens bruxuleantes.
Incessantemente bombardeada por spots e comerciais, objeto da moda e da eterna fonte de beleza e juventude, efêmera criatura do consumismo, mas negligenciada quando se trata de atendê-la em suas reais necessidades. Não se trata do segmento operário, que sustenta a máquina da produção, pelo contrário pertencem aos segmentos privilegiados da alta classe média e da pequena e alta burguesia. E os jovens vistos em “A Onda”, originam-se nestes destacados estratos sociais. Alguns deixam aflorar suas discordâncias, como Mona, mantendo-se à margem desse processo de exclusão. São exceção, porém indicam a possibilidade de daí surgir quantidade suficiente para se transformar em qualidade, à medida que se conscientizem de suas possibilidades como agentes de transformação das estruturas que já não os satisfazem.
“Eu não ligo para a história”
Nas primeiras sequências, a dupla Gansel/Thorwarth se concentra neles, mostrando-os em conjunto na sala de aula e no pátio. Salvo uma e outra cena, são vistos coletivamente, sem se destacar uns dos outros. A câmera se detém mais no professor Rainer Wenger, apresentando na abertura, quando os créditos ainda rolam, como símbolo da geração rock n´roll. Uma entrada em cena das mais elucidativas, semelhante às que viriam a seguir, identificando o tipo de personagens com o qual o expectador irá conviver ao longo de 116 minutos. Dirigindo em alta velocidade, ouvindo “Eu não ligo pra história. Eu só quero me divertir. Pegar umas garotas (…)”, em alto volume, ele se inclui logo na epopéia da qual será o principal protagonista. De meia idade, casado com a professora Anke (Christiane Paul), ele não está em bons termos com a direção e os companheiros do colégio.
Para manter sua cátedra tem de disputar com outro professor o seminário que deverá ministrar aos alunos. O que lhe resta é um título que não lhe agrada, muito menos se mostra à altura de seus objetivos. Ao contrário dos professores vistos em inúmeros “filmes de escola”, ele não é carismático ou dotado de simpatia suficiente para atrair os alunos para suas aulas. E tampouco “A Onda” possui uma trama igual à de “Entre os Muros da Escola”, onde se questiona o sistema educacional, e por extensão, a estrutura de poder. Ambos são baseados em histórias reais, com a diferença de que o filme alemão escapa aos estereótipos dos atritos aluno/professor. Nem é dotado do caráter libertário de Jon Voight, em “Conrack”. Wenger foge a estas classificações. Ele é, na verdade, o canalizador dos instintos reprimidos de seus alunos, que descobre em si a capacidade de moldá-los para que reajam segundo suas determinações.
“Poder de um grupo sobre a maioria”
Nas sequências em que isto se dá; o expectador já se encontra atraído pelos personagens e pelo tema: Autocracia. Definida por Wenger como o poder de um grupo ou de uma liderança para mudar as leis e, portanto, o comportamento do povo, em seu interesse. Ele próprio, Wenger irá, devagar, mostrar como isto é possível e em que termos seus alunos irão incorporar as regras que vão sendo criadas coletivamente, mas sob sua orientação. O que vem a seguir, com a criação da estrutura que exemplifica a Autocracia, mostra a capacidade do cinema de não ser apenas veiculo de diversão, motor da indústria hollywoodiana e de suas agregações nos vários países que tentam imitá-la, sem sucesso. Não deixa de ser um produto industrial, tecnológico, dependente de vasto público, para obter o retorno do capital investido na produção. Mas a diferença é ditada pelo segmento de público que busca atingir.
O expectador interessado em relaxar, deliciar-se com soturnas viagens pelo mesmo, não chegará à segunda parte do filme. Isto porque ele fala mais ao intelecto que à emoção, embora ambos terminem por se amalgamar. Não se discute sua capacidade – do expectador – de entender e ser cativado pela narrativa que vê na tela – é que ela não é impulsionada pelos volteios da câmera, pelos cortes rápidos nas mudanças de cena, nem pelas explosões e incêndios que escondem o mau conteúdo. A câmera de Gansel se mantém, na maior parte do tempo, estática, observadora, não interferindo na ação. E se o espectador não refutar as sequências de estruturação da narrativa terá pela frente gratificantes momentos de puro cinema reflexivo e de respeito à sua inteligência. Não há o personagem que se destaca; o que impulsiona a trama – esta evolui através da exemplificação da Autocracia para ir, aos poucos, virando um movimento real, com face e conduta própria. Estruturação que ele, expectador, segue extasiado, porquanto o que se desenvolve na tela “pode” integrar seu próprio inconsciente.
Tim descobre o poder que a arma lhe dá
A narrativa na segunda parte de “A Onda” passa a se deter mais nos personagens para que ele possa entender suas motivações. Por algumas sequências, ela se concentra em Tim, o jovem deslocado, inseguro, apegado ao que lhe garante espaço no agora movimento, “A Onda”. Dele partem as iniciativas mais arriscadas, aquelas que tiram o seminário sobre Autocracia da sala de aula e a levam às ruas. Seu comportamento é o de quem tenta compensar suas deficiências, carências afetivas e encontro de um lugar na sociedade através do uso da violência, da intimidação, da ameaça. Chega a se divertir patologicamente com o poder que o revólver lhe dá, quando confrontado com o grupo de punks, que ameaça bater num membro de seu grupo. Ele percebe, desta forma, que seu poder brota mais do cano da arma do que de sua agilidade ou capacidade de vencer o adversário.
Com Marco a descoberta se dá de outra forma. De repente, ele descobre que pertence a um grupo que o protege, o entende e o deixa agir livremente, coisa que não acontece no relacionamento com seus pais. Ali ele é líder, sua voz é ouvida e suas sugestões acatadas. Igual percepção se dá com os demais membros da “Onda”. Inclusive com Wenger, antes carinhoso com a companheira Enke, agora seu questionador. Numa discussão entre ambos ele parte para a agressão – ela rompe com ele e se estabelece o mal estar no casal. Sua vida agora se restringe ao movimento, onde todos se sentem amparados e dispostos a sustentá-lo em seus próprios termos. Nada, no entanto, nele se passa sem obter sua aceitação, ainda que seus membros participem da decisão. Não bastasse isso, a evolução do seminário, sua transformação em movimento, sua presença nas ruas, na internet, nas construções e prédios, gera desconfianças, atritos e problemas para “A Onda”, seus participantes e, principalmente, para Wenger no colégio e na cidade.
Filme remete ao pesadelo nazista
A começar pelo colégio onde seus integrantes pressionam os estudantes que dela não participam a aceitá-la, tornando-se membros e agindo segundo seus códigos de conduta, suas idéias, sua violência e suas ações contra os grupos punks, os que dela saíram; os que não torcem por sua equipe de pólo aquático e, sobretudo, os que não usam seu uniforme e símbolos. Fugiu, assim, ao controle de Wenger e de seus membros mais conscientes, como Marco. Tornou-se um polvo a se mover pelas entranhas do colégio e da cidade, sem deixar espaço para outros tipos de manifestações. Principalmente os de Karo e Mona (Amelie Kiefer), únicas a resistir desde o início às imposições do grupo. Incomodada não só com a perda do namorado, Marco, Karo procura denunciar as ações do grupo, tenta impedir suas ações, sendo vista, a partir daí, como inimiga. É uma resistente solitária, às voltas com o medo de alguns, a covardia de outros e a adesão pura e simples dos que acham natural o que se passa. Assim, devagar, sob a falsa idéia de segurança e camaradagem, os membros de “A Onda” criam um monstro autocrático.
Mas sem se anunciar como tal, a dupla Gansel/Thor Warth reproduz, 64 anos depois, o surgimento do Nazismo na Alemanha (1933/1945). O “ovo da serpente”, para lembrar o filme homônimo de Bergman, aparece em sua inteireza: adesão de vastos segmentos sociais, silêncio de muitos outros, resistência e oposição de alguns núcleos comunistas, de esquerda, democráticos, judeus, diante das ações da Juventude Hitlerista, as exibições compactas dos militantes nazistas, registradas pelas câmeras de Leni Riefenstahal, em “O Triunfo da Vontade”, e da violência da SS e da Gestapo. Entretanto, se a primeira correlação que o expectador estabelece é com o Hitlerismo, “A Onda” pode ser atualizada para o momento de intolerância enfrentado por africanos, asiáticos, latinoamericanos, imigrantes e minorias em países como França, Espanha e Itália.
É fácil identificar a origem do mal estar
Sob a cobertura legal, justificativa de dar segurança aos nativos e evitar a deterioração de suas condições de vida, famílias, grupos, etnias, trabalhadores são deportados. A não admitida disputa subterrânea por espaço no mercado de trabalho, queda de poder aquisitivo e de cobertura social, concorrência entre países emergentes e desenvolvidos no mercado globalizado e a decadência econômica dessas nações geram a intolerância. Os próprios alunos, no início do seminário sobre Autocracia, identificam no desemprego e na inflação, na exploração da mão de obra nos países periféricos (a fabricação do tênis Nike) os motivos do surgimento da Autocracia em seu país. Muitos deles, ainda assim, encontram nela saída para seus problemas. Lutar contra a intolerância e a perseguição aos imigrantes e etnias na Comunidade Européia não deixa de ser uma boa causa para nortear a vida de Marco e seus amigos.
Porém, o desencanto com a suposta falta de causa pela qual lutar os levam a se identificar com a primeira construção político-social que lhes é apresentada. São reacionários e intolerantes com os que buscam se estruturar de forma diferenciada. Lembram, com as devidas ressalvas, o ataque sofrido pela universitária Geisy Arruda, em outubro último, no campus da Universidade Bandeirante (Uniban). Os que lhe agrediram se comportaram como horda. E não se furtaram a dizer que defendiam a imagem da instituição. Também os integrantes de “A Onda” encontram fortes motivos para defender seu movimento dos que os veem como ameaça à sua integridade e a preservação da instituição colegial. O expectador atento às sequências finais do filme poderá fazer sua leitura, ciente de que há um mal estar na sociedade neoliberal e não foi causado apenas pela crise financeira de outubro de 2008. Não é difícil identificá-lo.
“A Onda” (“Die Welle”). Alemanha. Drama. 2008. 116 minutos. Roteiro: Dennis Gansel, Peter Thorwarth, baseado no livro “The Wave”, de Johnny Dawkins e Ron Bimbach, a partir da experiência do professor estadunidense William Ron Jones. Direção: Dennis Gansel. Elenco: Jurgen Vogel, Frederick Lau, Max Riemelt, Christiane Paul, Jacob Watschenz, Jennifer Ulrich, Maximilian Mauff.