“2012”: A sobrevivência dos culpados
Diretor alemão, radicado nos EUA, Roland Emmerich, projeta em seu filme a catástrofe planetária que se avizinha, caso não sejam controlados os agentes que destroem o equilíbrio da natureza.
Publicado 31/12/2009 10:00
E se de repente os ecologistas, os Maias e a Bíblia tivessem razão? O planeta mergulharia numa catástrofe de dimensões inimagináveis que lhes dar crédito ou não pouca importância teria. A geografia da Terra tal como conhecemos sofreria mudança tão radical que seria necessário reconstruir o que restou dela praticamente do zero. E as forças do mercado que a engendraram pouco ou nenhum poder teriam para recompor-se. Os pilares sob os quais a vida dos sobreviventes se reergueria teria que passar por transformações tais que outro tipo de sistema surgiria a partir daí. Isto se a civilização em suas latitudes ocidental e oriental não cedesse lugar a vermes e protozoários.
Diferente, portanto, do prenunciando pelo diretor alemão, radicado nos EUA, Roland Emmerich, em seu filme “2012”, que prevê a sobrevivência da elite capitalista no solitário continente africano. Uma ironia ditada pela capacidade do capital de se sobrepor ao interesse real da civilização, no qual se inclui o ecossistema e, sobretudo, a espécie humana. Adverso inclusive ao premiado documentário “Uma Verdade Inconveniente”, que mostra a ameaça do efeito estufa ao equilíbrio do ecossistema do planeta. E procura influenciar os centros de poder para que controlem a máquina de produção e consumo de seus países. Usa, para isto, fortes imagens dos deslocamentos das calotas geladas dos pólos norte e sul e seus efeitos sobre cidades inteiras causam apreensão e medo.
Efeitos especiais mostram
a ferocidade da natureza
Quem assistiu a ambos pode compará-los com tendência a igualá-los, embora isto seja difícil. A semelhança entre eles está em que tentam alertar com imagens poderosas a ameaça de extinção que pesa sobre os habitantes da Terra. E elas ficam por aí. “Uma Verdade Inconveniente”, que projetou o ex-presidente estadunidense Al Gore como um dos líderes da luta contra o aquecimento global, se detém nos efeitos da destruição da camada de ozônio, no derretimento das massas polares e na geração de tsunamis, Em “2012” Emmerich e seu co-roteirista Harald Kloser valem-se da ficção para radicalizar na capacidade de destruição das forças da natureza. Elas emergem diante do espectador com uma ferocidade capaz de mudar a posição de continentes; transformar a terra em lama e água, destruir megalópoles, ceifar vidas, ignorando a capacidade de reação de armas poderosas e intrincados sistemas de defesa, nos quais foram investidos bilhões para destruir vidas e nada valem diante delas.
Emmerich e Kloser estruturam sequências com vários núcleos, divididos pelos continentes para compor uma rala história que remete aos filmes catástrofes dos anos 70: “Terremoto”, “O Destino de Posêidon”. Nestas produções diversos grupos, casais e mesmo indivíduos se vêm impotentes diante da força da natureza. Em “2012”, depois do longo prólogo em vários países, a ação é centrada em Washington e na Califórnia. O entrecho de interesse humano, em que a espécie humana é ameaçada, se vale da preocupação com a preservação da família. O outro entrecho se prende a troca de informações científicas entre Washington e centros de pesquisa mundo afora, e à negociação com os poderosos que terão o direito de sobreviver à catástrofe. São chefes de estado e capitalistas que à custa de bilhões de euros devem ser salvos segundo Carl Anheuser (Oliver Platt), assessor do presidente dos EUA, Thomaz Wilson (Danny Glover), por serem representantes da espécie humana.
Harrelson faz personagem
em estado de graça
Cheia de ironias ou de vacilações, se o espectador preferir, a dupla Emmerich/Kloser inclui o escritor Jackson Curtis (John Cusak) e o geógrafo afrodescendente Adrian Helmsley (Chiwetel Ejiofor) para se contraporem à sanha dos vilões Anheuser e o presidente russo Yuri Zoltan. São eles que preservam o interesse humano da narrativa. Curtis, divorciado da mulher Kate (Amanda Peet), com dois filhos pequenos, diante do fracassado de seu livro “Adeus, Atlântida”, ganha a visita como motorista dos filhos adolescentes de Zoltan. Helmsley se equilibra entre dimensionar a catástrofe e evitar que apenas os poderosos sejam colocados em condições de sobrevivência. Com esta estrutura Emmerich, como diretor, equilibra a narrativa durante 128 minutos.
No entanto, “2012” objetiva pôr diante do espectador a catástrofe de proporções planetárias que sem dúvida se avizinha. O centro da narrativa são mesmo as consequências do desequilíbrio provocado pela emissão de poluentes que, devagar, rompe a camada de ozônio. Emmerick, neste entrecho, lança mão de inúmeros dados científicos, protestos de militantes ecológicos, citações da Bíblia, reminiscências da civilização maia, para dar sentido a seu filme. Inclui seu melhor personagem, o militante ecológico Charlie Frost, feito por um Woody Harrelson em estado de graça. Suas exposições sobre a destruição que vê à sua frente, seu blog ilustrado com recursos de animação e sua fraseologia em plena catástrofe quase salvam “2012” de ser apenas produto da máquina cultural hollywoodiana.
Feitos efeitos domina
a narrativa de “2012”
Seu delírio no alto da montanha ao ver as forças da natureza em ação o leva a transformar o que seria o completo horror numa comunhão com a morte. É um solo composto por efeitos especiais, encenação, fotografia e montagem. Composição levada adiante por Emmerich em outras sequências sem a mesma fusão entre intérprete e natureza. Nas demais sequencias a profusão de efeitos especiais e o deslocamento dos personagens entre eles rende suspense, sustos e deslumbra pela capacidade do cinema industrial, de grande massa, manipular a emoção do espectador. Embora ele, o diretor, tenha procurado com seu co-roteirista dotar seu filme de informações científicas sobre o aquecimento do sol, o rompimento do núcleo da Terra, o que se tem é repetição dos velhos seriados.
É a edição/montagem contrapondo tempo e espaço, o que está sob ameaça e o que deve escapar. Efeito que ainda rende, passados cem anos de invenção do cinema, tensão e ansiedade. Principalmente quando Curtis se delata para pegar o mapa que o livrará e também a família e Gordon (Tom McCarthy), atual companheiro de sua ex-mulher, da catástrofe. O avião tem de partir, o terremoto se aproxima veloz, o asfalto se abre, ele é tragado pela gigantesca cratera – ele vai se salvar ou não. O filho Noah (Lian James) e a filha Lilly (Morgan Lily) choram. Kate passa a torcer por ele. Gordon quer partir. O espectador não se aguenta na poltrona do cinema. O truque ainda funciona. Emerich o repetirá durante todo o filme, com igual eficiência.
Não que em determinado momento, o espectador não possa deixar a pipoca e o refrigerante de lado com a respiração presa e o horrorizado de ver cidades, patrimônios culturais, continentes serem engolidos pelo mover das placas tectônicas. E torça para que Jackson e sua família se salvem. Também que Helmsley consiga se sobrepor a Anheuser. Ou que se esbraveje contra Karpov por ter em seu supersônico Antonov uma bilionária coleção de luxuosos automóveis. Faz parte da trama. Inclusive a lembrança de que Curtis em seu livro “Adeus, Atlântida” já antecipava a eminência da destruição da civilização terráquea. Fato este que Charlie Frost em seu delírio lembra que os Maias e a Bíblia já o tinham alertado. Uma suposição de que as profecias se cumprirão, espécie de vingança da religião sobre a ciência. Mas uma das sequências mais bem urdidas e com pleno significado de “2012” é justamente a queda da Basílica de São Pedro sobre a cabeça do Papa e dos fiéis.
Filme se permite mexer
símbolos e mitos
Seu impacto sobre o espectador é mais o de vê-la destruída. No entanto, filmes como “2012”, aparentemente desligados da realidade imediata se permitem tocar em símbolos, mitos e questões que os filmes de autor quando o fazem causam polêmicas, descomunhão e perseguições. Produções policiais, cheias de explosões, sangue e corpos esfacelados têm sempre financistas, magnatas e empresários como vilões. Mostram dos capitalistas como predadores, mas são vistos apenas como exceções na estrutura do sistema. Ainda que Emmerich trace o perfil de Thomaz Wilson, afrodescendente a exemplo de Barak Obama, como o de um líder dotado de princípios, religioso, solidário, não o poupa e tampouco ao Capitólio, a Casa Branca, a Estátua da Liberdade e o país inteiro da destruição. Não deixa de ser emblemático ver o Primeiro Mundo se esboroar em sua própria voracidade. Principalmente os EUA.
Não que outras obras não tenham tratado de sua destruição com mais impacto e significado. Referindo-se ao conflito EUA/URSS durante a Guerra Fria, Franklin J. Schaffner faz Chalton Heston se indignar ao retornar ao país, depois de viagem interplanetária, e encontrar a Estátua da Liberdade destruída. Quem dominava o que restou da sociedade estadunidense eram primatas inteligentes e beligerantes. Tendo também o futuro como referência, Spielberg põe robôs à procura de quem neles injete sentimentos num país destruído, com Nova York tomada pelas águas do Atlântico. Metáfora da destruição causada pelo consumismo, a partir de roteiro deixado por Stlanley Kubrick, ele passeia sua câmera por ambientes frios, descoloridos, com os seres que restaram buscando prazeres furtivos. A abordagem como vê, era outra permitindo leitura mais consistente.
Entretanto, mesmo um filme produzido apenas para gerar grandes bilheterias pode ensejar elaborações como estas. Tem inúmeras rachaduras em sua estrutura narrativa. Passa 128 minutos situando o espectador, enchendo-o de informações supostamente científicas, quando bastavam imagens, narração pontual para situá-lo. O resto, a ação em si já forte o suficiente se encarregaria de fazer. Mas cinema industrial é assim mesmo. Quer conduzir sua emoção à custa de seu raciocínio. Pesa sempre a idéia de que o público médio tem dificuldade de acompanhar narrativas complexas. Nem todo espectador tem dificuldade para perceber para onde se encaminha a história. O encadear das imagens muitas vezes basta para ele se situar e absorver o conteúdo da obra.
De qualquer forma “2012” chegou aos cinemas em meio às discussões geradas pela Conferência de Copenhague que tratava do acordo global sobre o clima. Seu impacto no bolso de seus produtores pode ter sido mais satisfatório do que a influência exercida sobre os que tinham poder de decidir o futuro do planeta. De Copenhague, como o espectador sabe, não saiu acordo satisfatório algum. No filme, a espécie de humana que Anheuser achou digna para sobreviver não é menos frustrante: sobre suas costas pesa a catástrofe que quase a dizimou. Emmerich e Kloser, sem dúvida, erraram em suas escolhas.
“2012” (“2012”). 2009. Ficção Científica. EUA. 128 minutos. Desenho de Produção: Barry Chusid. Edição/Montagem: Davi Brenner, Peter S. Elliot. Fotografia: Dean Semler. Roteiro: Harald Kloser/Roland Emmerich. Direção: Roland Emmerich. Elenco: John Cusak, Chiwetel Ejiofor, Amanda Peet, Oliver Platt, Thandie Newton, George Segal, Dannu Glover, Wood Harrelson, Zlaiko Buric.