Fragmentos da luta pela maternidade voluntária no Brasil

A grávida de anencéfalo é livre para decidir sobre o parto

Confortadapela vitória do mérito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº54 (ADPF-54) no Supremo Tribunal Federal (STF), compartilho que, desde11.4.2012, a grávida de anencéfalo é livre para decidir se quer prosseguir agravidez ou antecipar o parto, sem anuência judicial.

AADPF-54, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS)e pelo advogado Luiz Roberto Barroso, com apoio da Federação Brasileira dasAssociações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e consultoria da Anis -Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero -, instou o STF a apreciar omérito: não equiparar a antecipação de parto de anencéfalo a aborto. A baseargumentativa é brilhante: a antecipação terapêutica do parto não é umeufemismo para o aborto (Debora Diniz).

Em1º.7.2004, o ministro do STF Marco Aurélio Mello concedeu liminar abolindoautorização judicial para interromper a gestação; bastava o laudo médico deanencefalia, alterando pela primeira vez, desde 1940, a lei: criando mais um"permissivo legal" – eram dois desde 1940: gravidez resultante deestupro e risco de vida para a gestante. Dezenas de mulheres forambeneficiadas, mas a liminar foi cassada (20.10.2004) por exigir julgamentoprévio do instrumento jurídico (ADPF)!

Oitoanos se passaram. Participei da idealização das Jornadas Brasileiras pelaMaternidade Voluntária, que viraram Jornadas Brasileiras pelo Direito ao AbortoLegal e Seguro, em parte decorrentes da ostensiva perseguição fundamentalistacorporificada na Câmara dos Deputados para viabilizar teses contra o aborto eaprovar o Dia do Nascituro. Era novembro de 2003.

Viverde "apagar incêndios" tem limites. Era urgente romper os grilhões dasolidão política feminista, e a conjuntura nos favorecia: o "núcleoduro" do governo dizia amém ao Vaticano, mas o Ministério da Saúde e aSecretaria de Políticas para as Mulheres (SPM) faziam a disputa ideológica semmedos.

ARede Feminista de Saúde coordenou a formalização das Jornadas (Brasília-DF, 5 e6.2.2004), visando a: estimular e organizar mobilização nacional pelo direitoao aborto legal e seguro, através de debate público; apoiar projetos de lei queampliam os permissivos legais; se contrapor aos projetos de lei contra oaborto; e ampliar o leque de aliados para a descriminalização/legalização doaborto. Nem mais, nem menos.

Trêsposições estavam postas: lutar apenas por mais permissivos; a pecha de que asJornadas abriam mão do radicalismo, apoiando posições gradualistas(permissivos); e a ideia das Jornadas, que avaliava que as três visões não eramexcludentes. Na 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (julho,2004), aprovamos moção de apoio à liminar do STF e a revisão da lei punitivasobre aborto, materializada na Comissão Tripartite sobre Aborto, que valeu a Lulainterpelação da CNBB; ao que ele respondeu que era contra o aborto, mas ogoverno trabalharia a revisão da lei. Depois roeu a corda: não encaminhou aproposta da Tripartite ao Congresso Nacional!

Hoje,o "chicote moral" do Vaticano impõe ao governo desta República laicae democrática toque de silêncio, mas ele terá de cumprir, sem chiar, a decisãodo guardião da Constituição, o STF, e incrementar medidas preventivas deanencefalia (taxas adequadas de ácido fólico), com vistas a diminuir a altaincidência de anencefalia: 4º lugar no mundo – um caso a cada 700 nascimentos.Fala-se de cerca de 500 nascimentos de anencéfalos/ano! "C’'est lavie"…

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