“Flores do Oriente": Memória da ocupação japonesa
Lembranças podem ser nubladas, eivadas de desencontros e até ser inverossímeis. Isto é mais verdade quando se trata de memórias da infância. O diretor chinês Zhang Yimou equilibra-se neste tema em “Flores do Oriente”, para, a partir das recordações da adolescente Shen (Zhang Xinyi), tratar da devastação de Nanquim pelas tropas japonesas, em 1937.
Publicado 08/06/2012 15:46
As impressões de Shen, interna numa Igreja Católica, com outras 11 garotas, são fugidias, de quem apreendeu a realidade da guerra através do medo e da religião. Daí a desconexão entre o que acha das pessoas e o que elas realmente são.
Suas impressões dão ao filme a idéia de incompletude. E o maniqueísmo predomina. Os japoneses são os vilões e os chineses os heróis. As feridas da ocupação japonesa (1937/1938) não foram até hoje cicatrizadas. E ela, aos 12 anos, não poderia vê-los de outra forma. Diferentes são suas impressões do coveiro estadunidense John Miller (Christian Bale), cuja tarefa é enterrar o pároco morto, e das profissionais do sexo que temendo ser estupradas abandonam o bordel onde trabalham. Eles irão, cada um à sua maneira, ser decisivos em sua sobrevivência e de suas colegas.
É a partir de seu ponto de vista que Yimou e seus roteiristas Liu Heng e Yan Geling, autor do romance em que se baseia o filme, irão mesclar vários gêneros cinematográficos para dar conta de suas recordações. O centro da narrativa é a expansão imperialista japonesa, impulsionada pela aliança Hirohito (1901/1989), Hitler (1889/1945), Mussolini (1883/1945), que desembocaria na II Guerra Mundial. E configura-se na crua e sangrenta batalha pelas ruas da Nanquim. A encenação de Yimou é primorosa. Sua câmera capta cada detalhe: corpos estraçalhados, sangue esguichando, num balé à Peckinpah (“Meu Ódio Será Sua Herança”). É hiperrealista.
Mas o que importa é o drama humano, o que a invasão causa às adolescentes, ao coroinha George Chen (Huang Tianyuan), às 16 profissionais do sexo e ao coveiro Miller. Shen enquadra-os logo. As profissionais do sexo são o mal. Miller oscila entre a esfinge e o salvador. E Chen é seu protetor. Estes papéis irão se inverter ao longo do filme. Com ela e suas companheiras deixando de enquadrar as pessoas na luta maniqueísta do bem contra o mal.
Miller é o retrato da cobiça
Se elas não se misturam com as profissionais do sexo, estas, principalmente a bela Yu Mo (Ni Ni), também não simpatizam com elas. Prevalece a parábola da inocência e da “perdição”. Mo sabe do que se trata. Shen, não. Miller é o terceiro vértice de sua impressão. Ele é a cobiça, só pensa no dinheiro. Mas é também o capital e o vício (ele ataca a adega e se embeba do vinho: “o sangue de Cristo”). É também a luxuria. Bêbado ocupa a cama do pároco falecido e seduz Mo. Sem escrúpulo algum e disposto a tirar proveito da guerra.
É uma imagem pouco lisonjeira do estadunidense, feita com sutileza. Oportunista, quando se vê encurralado, usa de artimanhas. Esconde-se detrás da batina e com isto, a visão que passa é de “herói” aos olhos de Shen. Seu encontro com o coronel Hasegawa (Atsuro Watabe) é primoroso. O oficial japonês esbanja civilidade enquanto ele é monossilábico. Há grande diferença entre a cultura de um e outro. Sobra-lhe, no entanto, esperteza e múltiplas habilidades.
Sua relação com Mo, ambos do baixo proletariado, é de iguais. Ela conhece o baixo mundo, ele também. Ela sabe sobreviver entre víboras, ele, dependendo das circunstâncias pode ser uma delas. Ambos podem, numa situação-limite, se revelarem. Ela cheia de nobreza, ele solidário. Esta desconstrução desvenda-os. Shen consegue, enfim, apreendê-los. Quando Hasegawa cria o impasse; Mo muda a visão que Shen tem dela. Torna-se complexa, multifacetada, sem maniqueísmo. Miller também sofre verdadeira metamorfose e se humaniza.
A visão de Shen se amplia, num elogiável rito de passagem. A estética de Yimou, como é normal em seus filmes (“Amor e Sedução”, “Lanternas Vermelhas”) se presta aqui não para
imagens luxuriantes, mas para reforçar metáforas e fábulas. Na sequência em que Mo se revela capaz de altruísmo e solidariedade, ele põe Shen sentada, com velas acessas atrás dela, como se a santificasse, enquanto as 14 companheiras de Mo, em floridos vestidos de seda, dançam e cantam avançando para ela: “Permita-me cantar a lenda do rio Qin Huai/Lenta e apaixonante/ Para cada um de vocês/ Desde a era antiga o rio corre graciosamente/ Ele é a beleza do Sul”.
É apenas a imagem, o visual, numa projeção de Shen. Grande cinema. E a voz em off da garota, agora amadurecida, lembra as mulheres que diferem dela apenas por terem um passado de exploração sexual, sem nostalgia. Embora, com todas estas virtudes, “Flores do Oriente” pode ser visto apenas como um drama de guerra bem feito. Mas uma obra de arte não é apenas o que se vê na tela. É mais do que a bilheteria e o fulgor das estrelas. É o que projeta da realidade ou da fantasia para abrir corações e mentes.
“Flores do Oriente” (“Jin Lin Shí San Chai”). Drama/Guerra. 2011. China/Hong Kong. 145 minutos. Fotografia: Zhad Xiadding. Música: Qigang Chen. Solo de Violino: Joshua Bell. Roteiro: Liu Heng, Yan Geling, baseado no romance deste. Direção: Zhang Yimou. Elenco: Christian Bale, Ni Ni, Zhang Xinyi, Huang Tianyuan, Atsuro Watabe.