“A Bela Junie”: quando a razão controla a paixão

Numa época em que o amor cede lugar ao desencanto e termina em tragédia, o diretor francês Chistophe Honoré discute a formação de casais disfuncionais e indica que a paixão depende das escolhas que cada um faz na vida.

Sem dúvida o amor, um dos mais célebres temas da vida e da dramaturgia, se adapta aos novos tempos. Não de forma desbragada, como numa paixão que, nos dias de hoje, terminaria por cair no ridículo ou numa das tragédias que ocupam a mídia diariamente. Mas sob controle, de maneira que não impeça o/a amante de afastar-se sem provocar mais dor que esperança. E chega-se, através desta escolha, à renúncia de um dos sentimentos mais caros ao ser humano. Neste “A Bela Junie”, do diretor francês Christophe Honoré, livremente baseado no romance “A Princesa de Cléves”, de sua compatriota Madame de Lafayette (1634/1693), ficamos diante de vários casos de amor, que se enovelam, para, enfim, serem puxados os fios que desvendam as intenções de cada parceiro envolvido. E como estamos ainda definindo o perfil deste Terceiro Milênio, que herdou fantasmas, vícios, dúvidas e virtudes dos que o antecederam, ele, o amor, é cheio de desencontros, novos parceiros, inclusive do mesmo sexo, e um modo de “viver a paixão” sem se entregar ao ser amado.


 


 


O centro desta nova convenção; se podemos chamá-la assim, é envolver-se com várias/os parceiras/os ao mesmo tempo, sem levar em conta o sofrimento que se pode nelas causar. Assim é que Mathias (Esteban Carvajal-Alegria) envolve-se com Marie (Agathe Bonitzen), depois com Henri (Simon Truxillo), enquanto Marie tem um caso com Jacques Nemours (Louis Garrel), que está com Florence Perrin (Valérie Lang), mas acaba com Junie (Lea Seydoux), envolvida com Otto Cléves (Grégoire Leprince-Ringuet). Um imbróglio e tanto, porém recorrente à maneira como Madame de Lafayette (condessa Marie-Madeleine Pioche de la Vergne) montou o enredo de “A Princesa de Cleves”, considerado o primeiro romance moderno, centrado nas paixões da corte francesa de seu tempo. E que Honoré e seu roteirista Gilles Taurand transformaram em encontros e desencontros afetivos nestes tempos de pequenos amores e grandes tragédias. Eles se valem, inclusive, do recurso da carta comum nas tramas folhetinescas, que os ajuda agilizar a trama; desvendar as subtramas e revelar as paixões que começam a ser típicas destes novos tempos.


 


 


Junie bloqueia o desabrochar da paixão de seus parceiros


 


 


Embora pareça complicada a trama é conduzida com leveza e clareza suficiente para não nos entediar. Principalmente porque a câmera de Honoré passeia pelos personagens e situações, em freqüentes movimentos, detendo-se na ação simplesmente. E os diálogos, curtos, contribuem em muito para que a narrativa avance sem tropeços. Uma raridade em se tratando de um cinema acostumado à falação. De quando em quando pinça uma situação que envolve o professor de italiano Jacques Nemours e Florence, noutra atém-se à Mathias e Marie, para depois centrar-se em Junie, que acaba por fazer todos girar ao seu redor. Então, temos uma personagem abalada pela morte da mãe, tentando se adaptar à nova situação, enfurnada numa sala de aula, às voltas com assuntos que pouco lhe interessa e também aos demais colegas, mais afetos ao jogo amoroso. A todos intrigam, no entanto, seu jeito deslocado, quieto, evasivo. Junie é dada à melancolia, sentimento típico da época de Madame Lafayette, mesclado à tendência de não enfrentar os problemas de frente.


 


 


 


Como cada paixão desemboca em outra, causando impacto e desconforto aos demais enamorados; Junie é uma espécie de bloqueio a seu desabrochar. Seus amigos, principalmente seu primo Mathias, nunca sabem o que é real e o que é encenação em seu caso com Otto. Não é, desta forma, catalisadora das situações, fazendo-as se imbricar, se unir, para, enfim, todos terem relações satisfatórias. Isto fica claro na bela seqüência em que Jacques e seu amigo, também professor, desabafam mutuamente no canto de um café. Trata-se de uma conversa descontraída, ainda assim franca e reveladora, entre homens, sem segundas ou terceiras intenções. Trocam confidências sobre suas paixões por mulheres, temores de serem rejeitados e, por que não, receosos por sua fama de garanhões. E, embora namoradores, correm o risco de ficarem solitários, diante da recusa de seu objeto de desejo  de atender a seus reclamos. O macho estaria, assim, entregue às suas desventuras, por que não, vítimas de suas próprias artimanhas.


 


 


Jacques deixa de ser referência dos alunos


 


 


Notadamente Jacques Nemours acostumado a atrair para seu canto tanto a professora Florence quanto a aluna Marie e a ambas dispensar com meias palavras. E Louis Garrel com seu rosto de galã de cinema mudo, a lembrar Ramon Novarro, se presta à representação desse novo homem: o que não mais agarra sua presa, pois ela se tornou esperta demais para cair em suas velhas armadilhas. Elas não mais funcionam; Nemours caiu em suas próprias garras: apaixonou-se. Uma bela transformação para o homem deste milênio que adquiriu ao longo do Século XX muitas características de suas parceiras. Dentre elas à afetividade. O rosto triste e largado de Jacques Nemours à entrada do prédio onde mora Junie o comprova. Ele já não reage, está diante de um impasse mas nada faz para demovê-lo. Mesmo que tente ser mais que uma peça no círculo de parceiros que se unem e se desfazem. Seus alunos por mais que o respeitem, o têm agora como alguém que não se detém diante de obstáculo algum quando quer cativar seu objeto de desejo.


 


 


Então, com a nova situação, Jacques Nemours se tornou mais um numa engrenagem que o expulsa quando a tragédia se abate sobre ela. Sim, porque mesmo que Junie lhe escape e alguns dos colegas dela sejam reflexos dos novos tempos, outros deles continuam dotados de sentimentos à antiga. Ou seja, eles se entregam ao/à amado/a dispostos a se sacrificar. Recurso comum às relações da época de Madame de Lafayette, de amores feridos e vinganças terríveis. E Jacques Nemours com toda sua experiência amorosa vê-se perdido diante do comportamento escorregadio de Junie. Imagina-se a perseguição a seu amado, empreendida por Adele H no final do século 19 (1), e compreende-se o quanto as relações amorosas mudaram em cerca de um século. Há um clima de aceitação, talvez de respeito à posição do outro. E com isto fica-se no campo das falsas escolhas.


 


 


Vivemos a época das pequenas  escolhas


 


 


Não é outro o sentido de todo esse emaranhado circular de formação e desmonte de casais; o de que vivemos mais o tempo de pequenas escolhas, mesmo que nos cause dor. O intelecto fala mais que o sentimento – alguns diriam que o coração. Ou se preferir: a razão à emoção. Diante de tantas escolhas de que somos obrigados a fazer em nosso dia-a-dia; forçados pela propaganda, pela moda, pela estrutura político-econômica, ficar ou não ficar com quem se ama entrou também neste perverso esquema. Junie diante da tragédia que se abateu sobre ela, não se sente culpada; nem a título de consolo caiu nos braços de Jacques Nemours. Fez uma escolha, segundo ela, para não sofrer demais amanhã. Assim mesmo, com esta frieza, com a contribuição da atriz Léa Seydoux, de rosto enigmático, jeito de quem pouco se interessa pelo que se passa ao seu redor. Reação sem dúvida ditada pelo comportamento da época, em que há disposição para a extrema individualidade. E Honoré consegue transportá-la para a tela, em planos de conjunto, com uma ou outra aproximação para apontar diferenças e caminhos.


 


 


Um cinema em que os personagens são jovens, de alta classe média, demarcados por suas descobertas e disposição de afrontar o status quo, tal como Mathias e Henri, casal gay que assume sua paixão. Outra indicação de que há uma nova conformação de casais, ou duos; se preferirem, neste milênio. Já não são apenas homem/mulher, mais homem/homem, mulher/mulher que se embaralham para montar diversas configurações nas relações amorosas. Não é a toa que nos últimos anos haja uma tendência clara no cinema de conquistar esse público. Haja vista os prêmios dos filmes “O Segredo de Brokeback Mountain”, de Ang Lee, e agora “Milk”, de Gus van Sant. Ambos refletem a ascensão desta minoria à estrutura político-econômico-social, ainda que não totalmente. E mais pela via econômico-social, como segmento que precisa se ver representado no mercado consumidor.


 


 


Opção pelos casais disfuncionais atende as opções de mercado


 


 


Não é outro o objetivo dos referidos feitos, absorvidos pela máquina hollywoodiana, depois de caminharem pelas vias transversas da produção independente. De qualquer modo fecha o “ano Barak Obama”, de ascensão ao centro de poder de outra minoria – a da camada afro-estadunidense. Devagar se está fazendo a transição para a absorção das questões de gênero, de tendência sexual e de raça, por mais que continuem irresolvidas, enfrentando a bateria de preconceitos e perseguições. Honoré trata as barreiras de modo velado, prefere escancarar as formas de relações amorosas entre Mathias e Henri, em meio aos desencontros de Junie e Jacques Nemours. Inclusive dando-lhes a primazia da redenção, por decidirem enfrentar abertamente sua paixão no campus. Novamente uma questão de escolha, igual às demais, principalmente a de Otto que soa fora de época, destoando do comportamento deste princípio de milênio.


 


 


“A Bela Junie” cheia de microcosmos em movimento mantém a tradição cara à “Nouvelle Vague”, cujo centenário de comemora nestes 2009; de meter-se onde ninguém se aventura, sem, no entanto, desconstruir a linguagem e sair da superfície. Não divaga ao fechar sua exposição, amarrar suas subtramas e concluir sua narrativa. Deixa à nossa compreensão as sutis comparações de se fazer cinema num instante em que muitas certezas se esboroaram. E pede-se cada vez mais para que se faça filme para o mercado. Como se não houvesse uma sucessão de segmentos de público dispostos a se ver na tela, tornando-se eles parte deste mesmo mercado, cuja relação é estabelecida não só pelo tema, mas também com a bilheteria. Afinal, arte no sistema em que vivemos caminha movida à moeda, escassa, mas ainda forte referencial. O que não é pouco para qualquer filme que suscite tal reflexão. Muitos estão aí para isso!


 


 


“A Bela Junie” (“La Belle Personne”).  Drama. França. 2008. 90 minutos. Roteiro: Gilles Taurand/Chistopher Honoré. Elenco: Louis Garrel, Lea Seydoux, Grégoire Leprince-Ringuet, Esteban Carvajal, Simon Truxilo, Agathe Bonitzen e Valérie Lang.   

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