A causa de Milosevich também é nossa (1)

(parte 1) Breve crônica da recolonização da Sérvia


Indignados profissionais e outros tartufos que pululam na ampla gama do espectro político que vai dos fascistas (assumidos ou camuflados) aos neoliberais e social-democratas,

O objetivo maior do prolongado massacre balístico era desmantelar o que restava da Iugoslávia, que vinha sendo desmembrada desde 1991, com as secessões da Eslovênia e da Croácia, ambas patrocinadas, ao arrepio da constituição federal, pela Alemanha do reacionário Hellmutt Kohl. Formada em 1945 no ímpeto da heróica vitória dos partisans comunistas, que haviam, praticamente sozinhos, derrotado e expulso as tropas nazistas e desbaratado o regime  colaboracionista do torturador profissional Ante Pavelich, chefe dos “ustachis” (organização terrorista dos fascistas croatas, protegidos por Hitler, por Mussolini e pela Hungria, cujo currículo incluía o assassinato do rei Alexandre e do ministro francês Barthou)[2], a República federativa popular, socialista e auto-gestionária da Iugoslávia, agrupava seis repúblicas confederadas, dos eslovenos, dos sérvios, dos croatas, dos macedônios, dos bósnios e dos montenegrinos, com autonomia, no interior do território destas repúblicas, para minorias nacionais, albanesas, búlgaras  e outras.



 
Para perfazer sua obra de destruição, os neoliberal-imperialistas utilizaram, de maneira sistemáti­ca, o método inau­gurado pelos nazistas na aldeia de Guernica durante a guerra civil espanhola: tri­turar por via aérea uma aldeia indefesa para quebrar a moral da po­pulação apavorada. Utilizaram também bombas de urânio “empobrecido” e de fragmentação (em Nis e em Korisa, aldeia do Kosovo, onde foram mortas, a 14 de maio, cerca de cem pessoas), condenadas pela ONU, em resolução de agosto de 1996, como intrinsecamente criminosas.



 
A tortura é hedionda, mas eficaz. O povo sérvio reagiu com coragem e dignidade às primeiras vagas de bombardeios arrasadores. Formou até muralhas humanas para impedir a destruição das pontes sobre o Danúbio. Mas novas sessões de bombardeio (de “pau-de-arara” coletivo) foram quebrando a resistência dos menos decididos. Mais os cadáveres e escombros se ampliavam, mais o medo e o desespero abriam brechas na coragem dos sérvios. Desde o início dos bombardeios, os operários da fábrica Zastava (maior fabricante de automóveis e caminhões da Iugoslávia) dormiam no local de trabalho, formando um permanente “escudo humano”. Enviaram à OTAN, via Internet, a mensagem intitulada “Esperando as bombas”, em que esclareciam estar protegendo “38.000 empregos diretos e 60.000 indiretos”. Em 9 de abril, a fábrica foi desintegrada por um míssil humanitário. Mais de cem trabalhadores foram mortos ou gravemente feridos. Daí por diante, compreensivelmente, o número de voluntários para os “escudos” foi diminuindo. As garras da harpia M. Albright (secretária de Defesa, melhor dizendo, de Ataque de Clinton) garantiam morte certa para quem se atrevesse a defender com seus próprios corpos os alvos prováveis da bestialidade imperial[3].




Os furiosos bombardeios só cessaram quando as tropas sérvias abandonaram o Kosovo, parte integrante do território de seu país, deixando seus compatriotas remanescentes entregues a toda sorte de vexames e violências por parte dos kosovares albaneses sedentos de revanche. Policiais da OTAN, principalmente da metrópole imperial (FBI), em vez de proteger os sérvios, já que em princípio ao menos, a vida de um sérvio devia valer tanto quanto a de um kosovar, escarafunchavam freneticamente os locais onde pensavam ter farejado cadáveres de alegadas vítimas do “ditador” Milosevich. Enquanto as forças de ocupação da OTAN procediam a suas frenéticas escavações em busca de provas nunca encontradas dos massacres mentirosamente atribuídos ao presidente sérvio, os kosovares albaneses retornados partiam para a desforra, desencadeando sua vingança contra a minoria sérvia, espancando, torturando, massacrando aldeias inteiras. 




 


Faltava derrubar o governo do Partido socialista iugoslavo e capturar Milosevich. Em qualquer país, há sempre uma minoria de calhordas prontos a lamber as botas de um invasor. Tão logo manifestaram-se os sintomas de que a Sérvia estava suficientemente arrasada sob as bombas dos “humanistas” da OTAN, um bando de liberais da “quinta coluna” local prontificou-se a executar o trabalho sujo de destituir o governo de resistência patriótica e negociar a capitulação. Em setembro de 2.000, certos de que, com a infra-estrutura econômica destruída pelos mísseis da OTAN e a sociedade sufocada pelo bloqueio internacional imposto pelos governos imperialistas, parcela importante do corpo eleitoral os acompanharia na via da colaboração com os agressores, os colaboracionistas uniram-se em torno da candidatura presidencial do advogado Vojislav Kostunica, um liberal disposto a se pôr de joelhos diante dos invasores e executar-lhes as ordens. Ele chegou na frente de Milosevich, mas não obteve os 50% dos votos necessários para ser eleito no primeiro turno. A Justiça eleitoral marcou o segundo turno para 8 de outubro.  Contando, entretanto com o sólido apoio dos mísseis e do dólar imperiais, seus partidários recusaram a decisão e, no dia 5 de outubro, mobilizaram em Belgrado (capital da Sérvia e do que restava da Iugoslávia), uma multidão persuadida de que a servidão voluntária seria mais vantajosa do que os sofrimentos a que o país estava submetido. A manifestação, que adquiriu a dimensão de um levante contra-revolucionário, atingiu seu objetivo maior: derrubar o “ditador” Milosevich. 

 


 
Do alto de uma sacada do prédio da prefeitura de Belgrado, Kostunica abriu seu discurso triunfante proclamando: “Boa noite Sérvia liberada”. Era preciso a hipocrisia de um lacaio e a falta de caráter de um camundongo para falar em libertação quando o território da própria pátria estava ocupado por tropas estrangeiras. Evidentemente, a mediática imperialista justificou e comemorou o ato de força alegando que a contagem dos votos tinha sido fraudada. Uma alegação que vale tanto quanto as de que milhares de albaneses tinham sido massacrados no Kosovo. Poucos anos mais tarde, mentira semelhante (de que Saddam Hussein tinha acumulado armas de destruição em massa) serviria de pretexto para arrasar e ocupar o Iraque. 




A queda de Milosevich precipitou a agonia do grande projeto do marechal Tito, veterano do Komintern, combatente em defesa da República espanhola, chefe da resistência ao fascismo e à ocupação nazista da Iugoslávia e grande fundador da República socialista confederada dos eslavos do sul. Croata como Tito e, sobretudo ardoroso patriota iugoslavo, Emil Vlajki compôs duas obras, The new totalitarian society and the destruction of Yugoslavia (Ottawa, Legas, 1999) e Demonization of Serbs (Ottawa, Revolt, 2001), em que desenvolve, como anunciado no subtítulo desta (“western imperialism and media war criminals”), enérgico e extremamente bem documentado libelo contra os celerados que intoxicaram a opinião pública ocidental para apresentar a destruição da Iugoslávia como uma exigência do que chamam “comunidade internacional”, mas que não passa da “cosa nostra” do Império do dólar[4].




(continua)
 



Notas



 
[1] Dentre as denúncias desta guerra covarde e criminosa publicadas naquela ocasião no Brasil, menciono o encarte (que organizei junto com o companheiro Marcos Del Roio) de Novos Rumos, nº 31, 1999, que contém, entre outros, o notável artigo de Domenico Losurdo “Belgrado como Stalingrado: o imperialismo estadunidense e o desmembramento da Iugoslávia”, bem como dois artigos publicados em Crítica Marxista nº 9, 1999: uma análise de João Roberto Martins sobre a “diplomacia dos porta-aviões” e um outro artigo de Losurdo sobre o mesmo tema, “Panamá, Iraque, Iugoslávia: os Estados Unidos e as guerras coloniais do século XXI”.

[2] A direita terrorista croata, conduzida pelo coronel Pertchevitch e pelo advogado Ante Pavelich, preparou vários atentatos contra o rei Alexandre, não porque era rei, mas porque era sérvio. Em 9 de outubro de 1934, em Marselha, quando efetuava visita oficial à França, foi assassinado pelo terrorista macedônio Tchernozemsky, manipulado pelos croatas. No atentado morreu também Barthou, ministro francês das relações exteriores, cuja política centrava-se no esforço para isolar diplomaticamente a Alemanha nazista. (Aproximou-se da União Soviética com esse intuito).  

[3] Retomo aqui passagens do artigo “Grandeza e agonia da Iugoslávia”, que publiquei no referido encarte de Novos Rumos.

[4] Uma cronologia, cujo marco zero é o ano de 1986 e o marco final a derrubada de Milosevich, relembra os principais episódios do lento, gradual e implacável esquartejamento do que foi seu país. Ver, em especial, as pp.22-30.

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