A China e a “nova luta pelo socialismo” (2)

A chave para a compreensão da consolidação do socialismo como alternativa progressista ao capitalismo passa pela consolidação nas próximas décadas – na China – de uma economia continental voltada ao leste para seus vizinhos do sudeste asiático e ao contin

Território e transição


 


Não vou discutir, no momento, acerca das discussões iniciadas em 1978 sobre a problemática que envolve a construção do socialismo na China nem tampouco da necessária recomposição do pacto de poder de 1949 entre o Partido Comunista da China (PCCh) e os camponeses. Vamos nos concentrar em questões que envolvem a política e o comércio internacionais e sua relação com a transição (1).


***
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                       
Seguindo a exemplo histórico que relaciona a consolidação do capitalismo com a integração territorial norte-americano, sustento que a integração econômica chinesa é a condição primária à consolidação do socialismo em âmbito mundial. A abstração não se encerra por aí. Movimento concomitante é o de fortalecimento financeiro da China e a junção de aliados ao seu redor, sobretudo seus vizinhos (o comércio intra-asiático já é maior que o praticado entre os EUA e a União Européia), na África e na América Latina. Este movimento já se faz sentir em organismos como a OMC e na ONU onde a China joga abertamente ao lado dos países periféricos, numa clara alusão da sobrevivência das idéias maoístas dos “Três Mundos”.


 


A integração de seu território somente foi possível com a implementação da política de Reforma e abertura. Não podemos, porém, esquecer-nos de que as capacidades produtivas instaladas no interior do país durante a era maoísta também foram fatores que facilitaram a presente integração (2). Além disso, uma verdadeira detènte entre a China e o ocidente propiciou um ambiente externo de calma à implementação das políticas planejadas pela governança chinesa. Entre tais políticas, o de reincorporação de Hong-Kong, Macau e Taiwan.


 


O primeiro passo à integração territorial chinesa foi a implantação das Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), cujos objetivos vão além às questões relacionadas com o acúmulo de capital e a obtenção de novas tecnologias. Objetivos políticos claros pautaram este movimento, pois as quatro primeiras ZEEs criadas em 1982 eram voltadas para Hong-Kong, Taiwan e regiões onde os chineses compunham expressiva comunidade comerciante. Isso possibilitou a criação de condições à reincorporação de Hong-Kong e Macau e atualmente serve de meio à incorporação e aumento da dependência de Taiwan ao continente. A solução da questão que envolve tais territórios foi possível com o incentivo a investimentos no continente por parte de chineses ultramarinos. Atualmente mais de 60% dos investimentos estrangeiros na China são feitos por chineses residentes no entorno do país.


 


Em 1984 outras 14 cidades litorâneas transformaram-se em ZEEs; em 1987 todo o litoral foi absorvido por esse processo; em 1992, todas as capitais de províncias e regiões autônomas e outras 52 cidades de fronteira, idem; em 1997 Chongqing (centro-oeste chinês) foi proclamada municipalidade diretamente subordinada ao governo central e em 1999 foi lançado o programa de desenvolvimento do oeste.


 


Não se pode deixar de lado que de forma simultânea à instalação de ZEEs, no interior da China a expansão das Township and Village Enterprises (TVEs) contribuiu para a realocação de mão-de-obra sobrante no campo chinês, propiciando um movimento de urbanização única na história mundial e ajudando o país a obter superávits comerciais crescentes e indispensáveis à sua política de modernização.


 


É o planejamento territorial levado às últimas conseqüências.


 



Falsificação, o planejamento e o PCCh como o “Príncipe Moderno”



 
A compreensão deste processo não pode prescindir de uma análise profunda da história chinesa. A análise histórica (formação social) é importante na medida em que circulam livremente falsificações como as propagadas pelo marxista moderado I. Wallerstein, para quem a China é parte de uma chamada “Economia-Mundo” (outro termo encontrado pra substituir o conceito de imperialismo), logo seu sucesso econômico tem razão em “realocações produtivas” que são antecedidas por um “convite ao desenvolvimento” feito pelos EUA. De forma pueril e supostamente baseado em Marx (marxismo longe da análise do concreto a partir de suas “múltiplas determinações”), Wallerstein, ao fazer uma análise a-histórica e economicista, despolitiza e simplifica um processo que tem na Revolução de 1949 sua principal condição objetiva (3).


 


Análises deste tipo podem levar a crer que Deng Xiaoping só foi o líder que foi graças à benevolência de J. Carter e R. Reagan e não por ter freqüentado uma escola cujo principal professor foi Mao Tsétung.


 


Retornando, no imediato percebe-se que a China – de forma planejada – durante 25 anos acumulou capital e tecnologia para em seguida transferir ao interior. Por sua, vez seu interior (rico em recursos minerais e fontes de energia fóssil) repassa ao litoral energia e matérias-primas indispensáveis à reprodução desenvolvimentista no país. Antes, o litoral foi um lócus de acúmulo de reservas cambiais. Tal acúmulo de reservas foi condição objetiva principal à implementação de uma política de juros atraente ao crédito. Este é o processo que acredito ser, nas próximas décadas, o fio condutor da transição capitalismo-socialismo em âmbito mundial.


 


Sob o ponto de vista da percepção socialista do processo, reitero o papel central do instrumental do planejamento e a capacidade de governança do PCCh . Planejar cada centímetro de um território das dimensões da China não é fácil. Não só. Planejar em consonância com os objetivos diplomáticos imediatos do regime de forma que: uma indústria petrolífera e gasífera desenvolva-se na fronteira com um dos maiores produtores de petróleo do mundo (Cazaquistão); construir uma gama de projetos em energia hidrelétrica com seus vizinhos do sudeste (Vietnã, Mianmar, Laos etc) ao mesmo tempo em que transforma o rio Mekong em uma via fluvial por onde passam bilhões de dólares em mercadorias todo ano;  montar centenas de projetos com a Rússia de forma que todas as cidades de fronteira entre os dois países fossem transformadas em entrepostos comerciais e succionadoras de tecnologias; transformar o vale do rio Yangtsé numa zona de altíssima concentração industrial, de forma que cerca de 6.000 unidades produtivas taiwanesas por lá se instalem, o que significa na ponta do processo criar as condições objetivas à reunificação nacional.


 


Mais: decidir que 55% dos créditos bancários sejam direcionados a projetos no oeste do país e nos últimos oito anos remeter cerca de US$ 600 bilhões sob forma de investimentos, não pode ser vista de forma superficial.


 


Trata-se de um planejamento concebido nos primeiros anos da política de Reforma e Aberta, onde nas palavras de Deng Xiaoping, “Uma região cresça primeiro para em seguida prover o crescimento comum…”. Não é uma brincadeira. Quem fora o PCCh seria capaz de administrar um projeto desta envergadura e suas contradições anexas?


 


O PCCh e o papel que cumpre hoje na China e no mundo confere-lhe o título um dia outorgado por Gramsci acerca do papel do partido comunista em suas respectivas formações sociais: o “Príncipe Moderno”. A vida de Bush seria muito mais tranqüila sem a existência do PCCh.


 


O planejamento como ciência e arte na China


 


A semelhança com o processo de integração territorial em andamento na China em muito se assemelha ao ocorrido na segunda metade do século XIX nos EUA, inclusive (como já falei em artigos anteriores) na escolha de uma cidade como o centro dinâmico deste processo. Nos EUA Chicago cumpriu esse papel, na China Chongqing é a “Chicago chinesa”. Entre 2001 e 2010 o governo chinês neste período prevê investimentos na ordem de US$ 200 bilhões para transformar uma poluída e decrépita cidade no ponto de referência entre o leste e o oeste do país, por onde se gerenciarão centenas de bilhões de dólares em mercadorias que passarão a circular em torno do Yangtsé. Impressionante.


 


Volto assim a realçar o papel do planejamento estatal neste processo. Apesar de a URSS ter inaugurado a utilização deste instrumental, na China o planejamento remonta há mais de dois mil anos, na época do chamado por Marx de “modo de produção asiático”. Repetindo o que já foi escrito por mim em mais de uma oportunidade, o modo de produção asiático correspondeu ao primeiro grande esforço de planejamento estatal ao intervir – com o apoio de massas camponesas – em imensas obras hidráulicas que permitiram ampliar as áreas agriculturáveis, a partir de áreas propícias (centrais), para áreas menos favorecidas pela natureza (4).


 


Ciência e arte entrelaçam-se neste instrumental. O planejamento pode ser concebido como a mais importante de todas as artes e de todas as ciências de nosso tempo. Somente este instrumental foi capaz de sistematizar o enorme – e histórico – acúmulo teórico e científico produzidos pelo homem. É a condição objetiva que habilita o homem a programar seu próprio destino. É a condição objetiva à superação da “pré-história da humanidade” (5).


 



Poderio financeiro e transição


 


De forma superficial o processo acima descrito serve, para mim, como uma hipótese a ser levada em conta neste processo que envolve tanto a consolidação do socialismo em âmbito mundial como a condição principal à transição entre os dois sistemas no mundo de hoje.


 


Mas não se resume a isso. Um enorme poderio financeiro – em sincronia com a integração territorial chinesa – foi gestado. Os resultados começaram a aparecer em diferentes pontos do globo.


 


Sobre a centralidade do poderio financeiro chinês e sua relação com o processo iniciado com a Revolução Russa é que dissertarei na próxima coluna.


 


Notas:


 


(1) Sobre este assunto sugiro: “O modelo soviético, Reforma e Abertura e a questão camponesa na China”. In. JABBOUR, E. “China: infra-estruturas e crescimento econômico”. Anita Garibaldi, 2006. págs. 192-210.


 


(2) O isolamento diplomático chinês e a possibilidade de guerra em duas frentes (contra a URSS e os EUA) levaram o regime a transferir indústrias inteiras do litoral ao interior. A política regional maoísta consistia na reprodução ao nível da província da ideologia da “auto-suficiência” ou da capacidade de se autodefender em caso de uma guerra. Daí a institucionalização do esquema das comunas populares, ou seja, um lócus onde coexistiria desde as instalações militares à indústria siderúrgica. Entre 1953 e 1978, mais de 70% dos investimentos em ativos fixos eram remetidos ao centro-oeste do país. Grande parte das unidades produtivas situadas no interior do país transformaram-se em bases à instalação das Township and Village Enterprises (TVEs), empresas estas que encerram por si só muito do sucesso da política de Reforma e Abertura implementada em 1978 (Fonte: China Statistical Yearbook on Fixed Asset Investments). 


 


(3) WALLERSTEIN, Immanuel: “The U. S. and China: Enemies or Allies?”. Fernand Braudel Center. Birghamton University. 01/03/2000. Disponível em: http://archives.econ.utah.edu/archives/pen-1/2000m04.1/msg00073.htm. A pobreza da análise de Wallerstein (assim como de dependentistas como André Gunder Frank, Rui Mauro Marini, Theotônio dos Santos e outros) reside na não utilização de categorias como o dos ciclos longos da conjuntura e da categoria de formação social. Transformam-se em teóricos liberais ao generalizar o espaço econômico mundial, e defini-lo como um “sistema mundial reprodutor de mercadorias”. Essas são as premissas para a elaboração de teses estagnacionistas.Teses estas que vêem os processos desenvolvimentistas na periferia como algo que só ocorre sob “concessão” do imperialismo. O pior é constatar a força destas idéias no seio da esquerda brasileira e latino-americana. Um horror.


 


(4) MAMIGONIAN, A.: “Desenvolvimento Econômico e Questão Ambiental”. Cadernos da VII Semana de Geografia. Universidade Estadual de Maringá. Maringá, julho de 1997.


 


(5) JABBOUR, E.: “Ser de esquerda: a postura ante a unidade, a soberania e o planejamento”. Coluna ao Vermelho. 10/01/2007.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor