A direita e os conservadores não aceitam a história como ciência

“Heidegger, filiado ao partido nazista e reitor da Universidade de Freiburg nos anos iniciais do regime de Adolf Hitler, foi um dos fundadores do irracionalismo contemporâneo (Lukács: 1972). Seus alvos foram o marxismo e os avanços da democracia na Europa.”

Entre aqueles para quem a mudança social não é possível e não pode ocorrer, podem ser distinguidas algumas nuanças. Muitos recusam o caráter científico da história, ideia que está presente em muitos escritores de nosso tempo. Os argumentos usados em defesa dessa tese são elos de uma linhagem que remonta modernamente a meados do século XIX quando, logo depois do massacre da Comuna de Paris (1871), o arqui- conservador Friedrich Nietzsche escreveu que “enquanto há leis na história, as leis não valem nada e a história não vale nada” (Nietzsche: 1974). Seu pensamento é radicalmente aristocrático, reacionário e antidemocrático. Ele se recusou “a escrever a história do ponto de vista das massas” e não aceitou procurar as “leis que podem ser derivadas das necessidades das massas, portanto, as leis de movimento das mais baixas camadas de lama e de argila da sociedade” (Nietzsche: 1974).

Nietzsche se orientou no sentido de uma história parada no tempo, imutável, pessimista; ele foi inimigo da democracia e do socialismo.

Há aqueles que têm uma visão mística da história, como o também concervador alemão Martin Heidegger. E os pregoeiros da assim chamada autonomia da história, entre eles Lévi-Strauss, Althusser, Braudel e Foucault. Uma variante desta forma de pensar é representada por Karl Popper, cujo empirismo radical freqüenta o mesmo atoleiro.

Um traço característico daqueles que, embora tentando escapar ao misticismo, descrêem da capacidade humana de conhecer e intervir nos rumos de seu desenvolvimento é a naturalização da história – a tese de que a sociedade segue leis consideradas naturais.

Outro viés conservador foi profundamente influenciado pelas teses de Nietzsche, que tiveram grande aceitação no século XX, influenciando desde autores pessimistas sobre os destinos do Ocidente, como o igualmente conservador Oswald Spengler (1964) até, principalmente, parte importante da historiografia soi-disant “libertária” que ganhou visibilidade e influência a partir das décadas de 1960 e 1970.

Um conservador de enorme prestígio foi o alemão Martin Heidegger que, na década de 1920, definiu a história como “destino”, que seria imposto aos homens, incapazes de decidir sobre ele pois o “destino”, pensava ele, seria determinado por forças externas à atividade prática doe homens, fora do mundo objetivo.

Em “Ser e Tempo”, sua principal obra filosófica (1927) Heidegger definiu a história como “destino”, que é a “historicidade em sentido próprio” 123 (Heidegger: 1990).

Em seu característico linguajar empolado, que mais esconde o pensamento do que o esclarece, Heidegger voltou a essa tese em outra obra onde disse que a história não é nem acontecimento nem transcorrer. “É pelo destino que se determina a essência de toda história. A história não é um mero objeto da historiografia nem somente o sentido da atividade humana. A ação humana só se torna histórica quando enviada por um destino” – envio que tem origem naquela entidade fantasmagórica que ele designou usando a palavra “Ser” (Heidegger: 2002).

Heidegger, filiado ao partido nazista e reitor da Universidade de Freiburg nos anos iniciais do regime de Adolf Hitler, foi um dos fundadores do irracionalismo contemporâneo (Lukács: 1972). Seus alvos foram o marxismo e os avanços da democracia na Europa. Em seu linguajar obscurantista ele fala de um “Ser” fantasmagórico que existiria apenas na esfera supranatural e se “revela” pela linguagem, embora nem todos possam entendê-la, pensa, num parentesco limitado com o mundo das ideias de Platão (formulado 24 séculos antes) e com o espírito absoluto de Hegel. Seus escritos são abundantes em indicações de uma visão mística onde os homens estão submetidos à ação de forças externas e impotentes perante elas. Seriam meros objetos num “jogo de circunstâncias e acontecimentos”, escreveu, no §73 de “Ser e Tempo”. Os homens sofrem a história ao invés de serem autores dela. Heidegger desenvolveu esse argumento no §74 de sua obra principal dizendo que a “pre-sença [sic] só pode, portanto, sofrer golpes do destino porque, no fundo de seu ser, ela é destino” (Heidegger: 2002). Pre-sença (em alemão, dasein, também traduzida por ser-aí) é a expressão que Heidegger usa para designar o ser humano.

Heidegger pensa que não é “pelo choque de circunstâncias e dados que emerge o destino”, mas o “seu acontecer é um acontecer em conjunto determinando-se como envio comum” (Heidegger: 1990). Em sua opinião, não há processo histórico mas apenas um presente perpétuo. No §72 de “Ser e Tempo” ele ressalta que o objeto da história é apenas o aqui e agora, uma vez que o passado já não existe e o futuro ainda não foi vivido. Na sequência de vivências, escreveu, “só é ‘propriamente real’ a vivência simplesmente dada ‘em cada agora’”. Isto é, “a vivência ‘atual’”.Assim a história seria o campo do imponderável e seu conhecimento não é possível. “Toda tentativa de se caracterizar ontologicamente o ser ‘entre’ nascimento e morte, tomando como ponto de partida ontológico implícito a determinação desse ente como algo simplesmente dado no ‘tempo’ está fadada ao fracasso”, escreveu.

Muitos autores refletem, explícita ou implicitamente, estas teses fortemente conservadoras. Difundem a tese reacionária de que não pode haver mudanças nem há possibilidade de intervenção humana organizada em processos encarados ou como inacessíveis ao conhecimento objetivo e à ação humana; ou como naturais e que, sendo assim, ocorrem à margem da experiência prática concreta, sendo imutáveis, e impostos aos homens que deixam de ser vistos como agentes ativos de sua própria história, mas resultados passivos dela.

Há ecos das teses de Heidegger nas correntes historiográficas que enfatizam a intuição, o particular, o individual, presas a um pretenso presente perpétuo.

Referências

Engels, Friedrich. Cartas sobre el materialismo histórico, 1890-1894. Moscou, Editorial Progreso, 1980.

Farias, Victor. Heidegger e o Nazismo – Moral e Política. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.

Fink, Eugene. La filosofia de Nietzsche. Madri, Alianza Editorial, 1981.

Halevy, Daniel. Nietzsche – uma biografia. Rio de Janeiro, Editora Campus, 1989.

Heidegger, Martin. A questão da técnica (1953). In Martin Heidegger, Ensaios e Conferências. Petrópolis, Editora Vozes, 2002

Heidegger, Martin. A superação da metafísica. In Martin Heidegger. Nietzsche: metafísica e niilismo. Rio de Janeiro, Relume Dumará, 2000

Heidegger, Martin. Sobre o Humanismo. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1967

Heidegger, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, Vozes, 1995

Lukács, Georg. El asalto a la razon – la trajetória del irracionalismo desde Scheling hasta Hitler. Barcelona, Ediciones Grijalbo, 1972

Nietzsche, Friedrich. A Gaia Ciência, § 354, in Obras incompletas. São Paulo, Abril Cultural, 1974.

Nietzsche, Friedrich. Além do bem e do mal – prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo, Companhia das Letras, 1992

Nietzsche, Friedrich. Aurora, São Paulo, Editora Scala, 2007, § 130.

Nietzsche, Friedrich. Considerações extemporâneas (Segunda: da utilidade e desvantagens da história para a vida). In Obras Incompletas. São Paulo, Editora Abril Cultural, 1974

Nietzsche, Friedrich. Obras incompletas. São Paulo, Editora Abril Cultural, 1974

Spengler, O. “A Decadência do Ocidente: esboço de uma morfologia da História Universal”. Rio de Janeiro. Zahar Editores, 1964.

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