A Ford e a desindustrialização
O fechamento das fábricas da Ford no Brasil evidencia o encolhimento da indústria no país, resultado de políticas econômicas equivocadas
Publicado 12/01/2021 17:52 | Editado 12/01/2021 18:09

Estamos todos de acordo de que Bolsonaro realiza um governo autoritário, com traços nitidamente neofascistas. Sabemos também que a sua postura irresponsável perante a pandemia pode ser claramente qualificada como genocídio. Tampouco restam dúvidas quanto às intenções neoliberais de Paulo Guedes no comando da economia, onde o objetivo central sempre foi o de promover a destruição do Estado e o desmonte das políticas públicas. Nesse conjunto, a obsessão com a dilapidação do patrimônio estatal se concretiza por meio da venda das empresas estatais e outras formas mais sutis de privatização.
Isto posto, é forçoso reconhecer que não cabe atribuir a esse governo todo o peso e responsabilidade a respeito da decisão recente da Ford de encerrar suas linhas de produção em território brasileiro. Na verdade, a saída da multinacional do automobilismo vem apenas confirmar uma tendência histórica de perda crescente da presença da indústria em nossa capacidade produtiva e econômica. Trata-se do processo que o economês chama de “desindustrialização”, que pode ser perfeitamente identificado pela figura abaixo.

Ao longo das últimas sete décadas, a indústria brasileira conheceu duas fases bastante distintas. Numa primeira etapa, observou-se um crescimento expressivo, que tem início no pós guerra, em especial com a política de industrialização iniciada por Getúlio Vargas e levada à frente por Juscelino Kubitschek. A participação da indústria da transformação no Produto Interno sai de 16% e atinge um patamar próximo a 27% ao longo da década de 1970. Esse é o período chamado de “milagre econômico” durante a ditadura militar que se instalou em 1964. Data dessa época a constituição da indústria de bens de capital e de base (siderurgia, petroquímica, energia elétrica, entre outras), da indústria automobilística e de material elétrico e eletrônico.
Collor e o início do fim
A segunda etapa vem na sequência do Plano Cruzado, em especial partir de 1990, quando Collor era o Presidente da República. Aquele ano foi um marco no processo de perda de importância da indústria em nosso PIB, com a introdução da abertura comercial indiscriminada e a disseminação generalizada da ideia de que tudo o que fosse importado seria de melhor qualidade. Ficaram muito marcadas as imagens, muito divulgadas à época, de uma suposta modernidade do produto estrangeiro, onde o Presidente inclusive associava os automóveis fabricados no Brasil por multinacionais a “carroças”, em contraposição às supostas virtudes dos veículos fabricados no exterior.
A partir de então, a presença da indústria despenca daqueles 27% para o patamar atual em torno de 11%. Vale notar um sobre fôlego no início dos anos 2000, em especial, durante o primeiro mandato do Presidente Lula. Mas a partir de 2005, tudo volta à tendência anterior da desindustrialização acelerada. Na disputa da narrativa, esse processo era muitas vezes saudado como saudável, uma vez que a indústria seria vista como algo do passado. Os exemplos de países escandinavos, por exemplo, eram apontados como uma substituição positiva de plantas industriais por setores de serviços e da chamada “economia do conhecimento”. Ocorre que no Brasil, ao contrário, a perda de protagonismo da indústria deu-se com a maior importância exercida por setores de baixo valor agregado no processo. Trata-se do agronegócio em fase de expansão e os serviços de baixa qualidade, como telemarketing e as operadoras de entregas.
Essas quatro décadas de desindustrialização corresponderam também ao período de auge do ideário neoliberal, onde um dos alicerces residia justamente na crença que a liberalização comercial completa só traria benefícios para os países que a adotassem. A tempestade perfeita que se abateu sobre o Brasil veio com um longo período também de sobrevalorização cambial, em razão da política monetária de juros elevados praticada pelo Banco Central. Ao apresentar nosso país para o universo da especulação financeira internacional como o campeão da taxa de juros, os governos permitiram que a taxa de câmbio valorizada artificialmente estimulasse ainda mais o consumo de importados.
Informática e Gurgel: governo joga contra
Todas as tentativas de se criar uma política industrial que favorecesse o surgimento e fortalecimento de atores industriais nacionais foram desmontadas. Esse foi o caso da política nacional de informática, por exemplo. Independentemente das críticas que possam ser feitas ao projeto, o fato é que o Brasil abriu mão unilateralmente de desenvolver tecnologia própria ou em condições de competir com os grupos multinacionais. As receitas do neoliberalismo apontavam que qualquer tentativa de proteção a setores nascentes ou estratégicos seria prejudicial ao país, em razão de custos fiscais associados aos subsídios necessários, aos preços mais altos e à qualidade inferior.
Outro exemplo emblemático foi um projeto na própria indústria automobilística, onde atuava a Ford. Ao longo da década de 1970/80, surge uma empresa nacional no setor, a Gurgel. Seus projetos eram ambiciosos e de custo relativamente reduzido, com inovações estratégicas já à época, como os motores à álcool e mesmo veículos elétricos. Porém, para competir e sobreviver em um ambiente dominado pelo oligopólio das multinacionais, era fundamental que a empresa contasse com apoio do setor público. Ao contrário de casos similares – como a Índia, por exemplo – o Brasil resolveu deixar Gurgel à deriva e a empresa não aguentou o clima pós abertura comercial. A falência em 1994 operou como uma pá de cal em qualquer ensaio de desenvolvimento tecnológico autônomo, que propiciasse algum grau mínimo de soberania nacional no setor.
O encerramento das atividades da Ford no Brasil implica na perda de 5 mil empregos diretos nas unidades espalhadas pelo Brasil inteiro. No quadro de aprofundamento do desemprego e da falência generalizada de empresas, certamente não pode ser entendida como uma boa notícia. Para além de tais postos de trabalho e da produção de veículos nas linhas de montagem cada vez mais automatizadas, a notícia é muito ruim também para o setor de auto peças, que depende basicamente das entregas para as própria montadoras, sob a base de encomendas. O chamado efeito em cascata de tal interrupção de atividades deverá provocar, além disso, um impacto negativo direto nas economias locais e regionais.
Necessário debate sobre rumos do desenvolvimento
Apesar de tudo, o governo Bolsonaro nada fez para reverter tal quadro. As declarações do Presidente e de seu Ministro da Economia são quase de exaltação ao fim das atividades da multinacional por aqui. Permanece sempre a lógica obsessiva de Paulo Guedes em cortar despesas; no caso, os chamados “gastos tributários” sob a forma de isenções tributárias. Uma loucura, caso se leve em consideração a continuidade da produção do grupo aqui na nossa vizinha Argentina. Ou mesmo a opção do grupo em 2009 de ampliar os investimentos ainda no Brasil, quando Lula ocupava o Palácio do Planalto.
Seria importante que a decisão da Ford recolocasse o necessário debate acerca dos rumos do desenvolvimento brasileiro e da recuperação da importância do planejamento como instrumento público para a construção de um projeto estratégico de futuro. A indústria ainda permanece como a opção de geração de maior valor agregado para nossa economia, mas isso exige um investimento público pesado em áreas essenciais, como educação e ciência e tecnologia. A China e demais países asiáticos são o exemplo vivo de que a inserção internacional exige recuperação de protagonismo nacional e não mais apenas uma aceitação passiva de subalternidade no cenário global.
Não existe a alternativa falaciosa de saltar etapas, como nos fazem crer os mercadores ilusionistas do neoliberalismo. Só conseguiremos atingir, de forma mais soberana como nação, a tão sonhada autonomia da economia do conhecimento se tivermos um sólido domínio e presença em áreas estratégicas da produção industrial. Ou então permaneceremos deitados no berço esplêndido da destruição de nossas reservas naturais para exportação de minerais e produtos agropecuários. Esse é o caminho para fincarmos nossas raízes, de forma cada vez mais definitiva, no atraso do pacto neocolonial da divisão internacional do trabalho.
Entendo muito importante essa análise histórica de Paulo Kliass, pois mostra como se iniciou o processo de desindustrialização na economia brasileira.