A fronteira na defesa da vida e da democracia

Em quase um ano e meio de governo, ou melhor, de desgoverno, quando se imagina que Bolsonaro atingiu o seu limite, uma nova ameaça de viés fascista desabrocha da ervas daninhas do bolsonarismo.

Foto: Silvia Izquierdo/AP

A temperatura subiu dos dois lados, como diz a boa dialética. Bolsonaro, de um lado, sobe o tom contra a democracia e persiste nas ações contrárias ao distanciamento social no momento em que o Brasil se aproxima de contabilizar 30 mil mortes, e, de outro, cresce aceleradamente o movimento em defesa do Estado Democrático de Direito, inclusive com atos de rua, não recomendados para o momento, mas em resposta à radicalização bolsonarista.

O atual ocupante do Planalto, enredado pelas pesquisas que apontam crescente e irremediável isolamento social e no desespero de se manter no poder, apela para o velho fisiologismo que, outrora, condenou. Hoje, mas do que nunca, sabemos que se tratava de pura fraseologia oportunista, típica dos encenadores hipócritas e falsos moralistas.

E por falar em moral, ele a perdeu para 70% da população brasileira, mas ainda tem a caneta e foi com ela que nomeou, na segunda-feira (1), o chefe de gabinete do senador Ciro Nogueira (PP-PI) para a Presidência do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Banco do Nordeste será entregue ao PL, do condenado Valdemar da Costa Neto.

Trata-se de um presente a dois legítimos representantes da moralidade pública.

Bolsonaro, aliás, que fala tanto em respeito à maioria dos votos que teve para se eleger presidente, esquece-se que, nem mesmo quando eleito, não contou com a maioria que preferiu votar em branco, nulo ou no seu adversário.

De lá para cá, o isolamento tem sido ininterrupto em razão da política antagônica aos interesses sociais, populares e nacionais comandada pelo ministro do sistema financeiro e dos rentistas, Paulo Guedes, e, agora, agravado pela forma irresponsável e negacionista com que enfrenta a crise sanitária.

O resultado não poderia ser outro senão o risco do país ser a vanguarda mundial na destruição de empregos, no fechamento de indústrias e empresas, e em número de miseráveis.

Insiste, cegamente, em seguir o exemplo de Trump, que anunciou que usará mão-de-ferro para reprimir os protestos raciais que crescem em todo o país e assustam a Casa Branca, e que, em tom teatral, chamou os governadores de “fracos” no controle das ruas. “É o Antifa e a extrema esquerda. Não culpem os outros!”, tuitou, numa clara manobra diversionista.

A aposta de Bolsonaro, inegavelmente, é no caos. E não apenas quando se contrapõe à medida ainda mais eficiente para combater a pandemia, o distanciamento social, cuja flexibilização só pode ser operada de forma racional e com rigoroso georeferenciamento, sob pena de governos estaduais e municipais perderem inteiramente o controle da pandemia, o que se confirma diante da preocupante interiorização da doença no país, mas também nos conflitos de rua que começam se esboçar com a decisão de alguns grupos, inclusive de torcidas organizadas, dispostos a enfrentar o bolsonarismo em território propício à configuração do caos, ainda que os adeptos de Bolsonaro estejam cada vez mais reduzidos, embora mais raivosos e estridentes.

Nesse quadro, Bolsonaro tenta encontrar guarida, pasmem, no artigo 142 da Constituição Federal, a partir da interpretação medíocre do sr. Yves Gandra, repetida euforicamente pelos bolsões digitais responsáveis pelos fake news favoráveis ao presidente.

Segundo essa tese de Gandra, cuja trajetória de jurista, invariavelmente, o colocou do lado dos setores mais retrógados da nação, as Forças Armadas podem exercer, conforme aquele dispositivo constitucional, “poder moderador” da República, acima do Legislativo e do Judiciário. Uma tentativa sórdida de rasgar a Constituição. Uma aberração jurídica devidamente respondida pelo, esse sim, jurista Modesto Carvalhosa, que a caracterizou como “golpista”, para não dizer, em se tratando de Bolsonaro, fascista.

Como todo cuidado é pouco diante de tamanha ameaça à democracia e à Constituição que a sustenta, o deputado Márcio Jerry, do PCdoB do Maranhão, providencialmente, acaba de apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição para deixar o artigo 142 livre de qualquer interpretação de natureza golpista, deixando claro que as Forças Armadas são instituições do Poder Executivo “destinadas à defesa da Pátria”, sendo “vedada qualquer requisição de missão de garantia dos poderes constitucionais ou de Operação de Garantia da Lei e da Ordem, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, que possa de algum modo suprimir ou mesmo limitar as cláusulas previstas no art. 60, § 4º”.

O fato é que a sanha golpista de Bolsonaro e de suas hordas histéricas está provocando o crescimento acelerado do movimento em defesa da democracia, inibido apenas pela impossibilidade de manifestações de rua em razão da pandemia que já fez do Brasil e, por tabela, a América Latina, o novo epicentro mundial da doença.

Um Manifesto com mais de 250 mil assinaturas intitulado “Juntos pela Democracia” foi capaz de reunir as mais diversas e mais representativas personalidades do mundo político, artístico, esportivo, religioso e social do país, como se fossem os tempos das “Diretas Já”, aliás, ainda com mais amplitude.  

Nove associações de magistrados e procuradores alertaram para os “riscos institucionais” e afirmando que “devem ser preservadas as condições essenciais à manutenção do próprio Estado Democrático de Direito”. “Investidas contrárias [ao Estado Democrático de Direito] devem, portanto, ser pronta e firmemente rechaçadas. O Ministério Público e a Magistratura Nacionais não se omitirão”, afirmam no texto.

Até mesmo o vice-presidente, Mourão, pronunciou-se: “Falam de golpe. Isso está totalmente fora de propósito, fora de ordem e fora de foco”, disse, acrescentando que “outros períodos da nossa história não podem ser repetidos atualmente, porque o mundo mudou, o país mudou”, comentou.  

Outro alerta veio do Supremo. O decano Celso de Mello, relator do inquérito que investiga as ameaças golpistas, comparou o Brasil à Alemanha de Hitler e, em mensagem reservada enviada a interlocutores no WhatsApp, disse que bolsonaristas “odeiam a democracia” e pretendem instaurar uma “desprezível e abjeta ditadura”. “Guardadas as devidas proporções, o ‘Ovo da Serpente’, à semelhança do que ocorreu na República de Weimar (1919-1933), parece estar prestes a eclodir no Brasil!”, escreveu.

Já o presidente da CD, Rodrigo Maia, pediu dureza no combate aos ataques sofridos pelo Supremo e ao Congresso Nacional. “Por que se fazem ameaças? Porque se quer impedir que o outro cumpra suas funções constitucionais. Não quer que o ministro continue investigando as questões das fake news. Ir até a casa dele, agredi-lo, isso tudo passa do limite. O que não pode é milhares de robôs criando uma narrativa com pessoas estimulando ódio às instituições do Brasil”, disse.

Em quase um ano e meio de governo, ou melhor, de desgoverno, quando se imagina que Bolsonaro atingiu o seu limite, uma nova ameaça de viés fascista desabrocha da ervas daninhas do bolsonarismo.

Não há limites na obsessão doentia de anular as conquistas democráticas, sociais e soberanas alcançadas pelo Brasil ao longo de sua história.

Não há limites na rejeição aos avanços civilizatórios do país, até porque esses não contaram, milimetricamente, com o concurso de Bolsonaro e seu entorno, muito pelo contrário.

Portanto, não haverá fronteira por parte da Nação na defesa da vida e da democracia.

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