“A Vida Útil”: Eterna Vítima
O abandono das instituições de preservação e formação de público e o cinema são os temas deste filme do diretor uruguaio Federico Veiroj
Publicado 25/10/2012 12:33
As relações entre cultura e capital são o centro deste pequeno filme do uruguaio Federico Veiroj. De forma didática, mesclando documentário e ficção, ele expõe em 69 minutos, a luta de uma Cinemateca uruguaia para sobreviver. O que a sustenta são as contribuições dos sócios e o patrocínio de uma Fundação. Não há outra pretensão em “A Vida Útil – Um Conto de Cinema” senão esta: mostrar os conflitos e o incontornável antagonismo entre arte e lucro na sociedade capitalista. Suas vítimas são o espectador e o artista.
O filme, em belo preto e branco, é simples. Veiroj tem o cuidado de, nesta simplicidade, cativar o espectador para seu tema. Através de Jorge (Jorge Zellinek), gerente e animador cultural da Cinemateca, passeia por ela como se fosse outra vertente de “Cinema Paradiso”. Nas prateleiras estão fitas em VHS e em celulóide. Nas paredes cartazes que registram várias fases do cinema. É um tesouro a ser descoberto na sala escura.
É este rico universo que está ameaçado não só pelas más condições dos projetores de 35 mm como pela sustentação da própria Cinemateca. Com 50 anos de existência, ela precisa de recursos financeiros para se reestruturar. Veiroj não busca contrapontos para este impasse, limita-se a expô-lo. Sem recursos financeiros, a Cinemateca pode fechar. E com isto deixa de preservar filmes, memória e formar platéias bem pensantes.
Fundação só quer lucro
Desta forma, Veiroj confirma o quanto a cultura depende de suporte financeiro para atender seus objetivos. Jorge e demais membros do Conselho o confirmam em suas reuniões. Apenas uma peça do projetor de 35 mm, importada da Rússia, custa U$ 15 mil dólares, cerca de R$ 30 mil reais Chega-se, assim, ao centro do impasse: o quadro de sócios é insuficiente para bancar as mudanças necessárias e a Fundação se nega a continuar patrocinando uma instituição não lucrativa.
Este é o tipo de problema enfrentado pelos agentes culturais: elaborar seus projetos e encontrar patrocinadores. Estes só entram com o capital se atender a grande público e assim mesmo com poder aquisitivo para consumir seus produtos. Se forem projetos culturais experimentais, de preservação de memória e formação de platéia empresas privadas não se interessam. O projeto termina engavetado. Quem perde é o artista e o público. A elevação da consciência político-social acaba bloqueada pelos interesses mercadológicos.
A Cinemateca termina vítima desta visão míope em relação à cultura: ser rentável. A arte, assim, se torna produto cultural com valor de mercado, medido pelo volume da platéia, interesse de empresários e colecionadores de arte. Veiroj, mais uma vez não trata desta questão. Sua contribuição em duas partes de “Vida Útil” está em levantar este impasse e mostrar suas conseqüências. Pois as vítimas da decisão da Fundação são a Cinemateca, os aficionados do bom cinema e Jorge, que fica desempregado.
Estado deve bancar a arte
Duas outras questões ainda suscitam o filme: a arte ser rentável e o papel do Estado. 1 – A arte é um bem social não um produto. A ele devem ter acesso todas as camadas sociais. Transformar a arte em produto é limitar sua contribuição para a elevação da consciência político-social. Devendo circular longe da cobiça dos colecionadores que a adquirem como bem patrimonial. 2 – Cabe ao Estado incentivar a criação, zelar pela estrutura e a circulação do bem cultural, mantendo-o longe da apropriação que busca o lucro.
Estas questões, claro, não estão no filme. Bastou suscitá-los. Isto Veiroj faz, e bem. Gera melancolia, indignação, ver Jorge fechando a Cinemateca. É a terceira parte de “Vida Útil”. Veiroj muda o enfoque – da denúncia para a nostalgia. O faz usando amplos recursos narrativos, com destaque para o uso da música quando Jorge sai em busca de Paola (Paola Venditto), professora de Direito, sua segunda paixão. Cada entrecho cita vários gêneros cinematográficos. É um de uma riqueza arrebatadora.
Assim, quando Jorge vai ao encontro de Paola o percurso é marcado por músicas dos faroestes mudos, quando dança nas escadarias da Universidade por trechos dos velhos musicais, quando observa os peixes no lago por sinistros acordes de suspense, e ao caminhar com Paola pela rua por trilhas de dramas românticos. Essa fusão de situações e marcações musicais amplia o estado psicológico de Jorge, amenizam o choque provocado pela perda de sua primeira paixão: a Cinemateca. É o uso inteligente das possibilidades da música e do som para dar conta da tragédia e do romance.
Além disso, Veiroj se permite jogar com a verdade, a mentira e a aparência das relações sociais na bela sequência da sala de aula da Universidade. Jorge equilibrando-se entre a metáfora e a sátira diz aos estupefatos estudantes que vivemos todos numa ampla encenação mentirosa. Serve para a sociedade capitalista que se arma de mentiras para preservar seus lucros. A decisão final cabe ao espectador, depois de assistir a esta pequena grande obra uruguaia.
“A Vida Útil – Um Conto de Cinema” (“La Vida Útil”).
Uruguai. 2010.
Drama. 67 minutos.
Música: Léo Masliah.
Fotografia: Arauco Hernández.
Roteiro: Inês Bortagaray, Gonzalo Delgado, Arauco Hernández, Federico Veiroj.
Direção: Federico Veiroj.
Elenco: Jorge Zeliinek, Manuel Martinez, Paola Venditto.