“Algo Como a Felicidade”: Vidas em reconstrução
Filme do tcheco, Bohdan Sláma, trata da vida da juventude tcheca e de sua busca de saída, num país em reconstrução.
Publicado 04/04/2008 19:29
“Vencer na vida” é um dos mais fortes dogmas do sucesso individual na sociedade capitalista. Na República Tcheca, pós- Queda do Muro de Berlim, ele é um dos parâmetros que norteiam a vida do casal Soucek e dos que vivem à sua volta. Numa discussão de Jirica (Simona Stasová) com seu marido Olda (Bolek Polivka) sobre a ida de Jiri (David Dolnik), namorado da filha, Moni (Tatiana Vilhelmová), para os Estados Unidos, ela o acusa de ter inveja do jovem tcheco, por não ter emigrado para o “paraíso do capital”. Olda retruca cheio de zombaria, dizendo que não vê vantagem em ser subalterno num país como os EUA. O sucesso pessoal é uma das vertentes de “Algo Como a Felicidade”, surpreendente filme desta nação que antes, com a Eslováquia, formava a antiga Tchecoslováquia. A outra, não menos interessante, é a relação entre Moni e Dasha (Ana Gieslerova) e Tonik (Pavel Liska), cada um buscando sobreviver à sua maneira num país em reconstrução.
Há em “Algo Como a Felicidade”, de Bohdan Slam, um clima de algo por reconstruir sobre os escombros dos pilares outrora sólidos. Dasha representa este passado, por não buscar nenhuma sobrevivência, tão só a compulsiva relação amorosa com homens que nada querem com ela. E, além disso, não tenta superar os obstáculos que se lhe opõem, nem dá a devida atenção aos gêmeos Pat e Denis, alimentados às vezes por Moni e Tonik, por quem nutre uma paixão não correspondida. Mas, ao invés de tentar saídas, ela se apega às drogas e a depressão, além de um compulsivo amor por um homem casado, Jará (Marek Daniel), empresário do setor de massagem. Moni tenta ajudá-la, mas é vista como alguém que dela tem compaixão. Numa das cenas que bem revela este seu estado de espírito, Moni, acompanhada de Tonik, Pat e Denis chegam à seu apartamento cheios de presentes de Natal. Ela, no entanto, refuta-os, como se os presentes e o que eles representam falseassem as relações entre elas.
Dasha resiste aos novos costumes
Dasha renega as novas concepções e costumes, embora esteja apegada ao que o capitalismo tem de mais perverso: drogas, bebida, tendência às excentricidades. E recusa construir quaisquer relações efetivas, salvo as fugazes, sem pensar no futuro, esteio a que se apegam todos no sistema, na forma de “vencer na vida”. Em certo sentido, ela e Olda sofrem das mesmas hesitações, espécie de resistência ao que lhes impõe o sistema. Olda passa parte de seu tempo bebendo, discutindo com Jirica e tentando entabular conversa com Tonik. Mas não apresenta nenhuma opção para a situação em que vive com a mulher Jirica e filha Moni. Parece não haver caminho a percorrer, só o mergulho na derrisão. Há neste seu comportamento um pouco do desencanto que representa a adesão do país ao sistema capitalista, que, a princípio, não lhe mostra qualquer opção em seu próprio território.
Olda, por outro lado, é com Jirica o contraponto entre Dasha e Moni. Embora adotem comportamentos diversos, esperam que elas encontrem saídas para suas vidas. Moni, nos instantes em que Dasha confunde os parâmetros que devem nortear sua vida, alimenta e leva os gêmeos para sua casa. Ela e Jirica tratam deles e, em certos momentos, se divertem com eles. No entanto, ela é bem diferente de Dasha, é mais concentrada e sua esperança reside no chamado do namorado que foi para os EUA. Um tipo de saída em que o casamento representa sua redenção; e ela não constrói outra alternativa. Uma contradição aparente com Dasha, que, diante dos bloqueios reinantes em sua vida, luta desesperadamente para não se deixar dominar, ainda que não o faça de modo lúcido e organizado.
Fragilidade das relações mostra busca de identidade
O diretor e roteirista Bohdan Sláma pega a fragilidade das relações entre elas e as transforma numa busca de nova identidade. É como se Dasha, embora jovem, tivesse perdido seus pontos de apoio. Ele estava no pai de seus filhos gêmeos, mas dele não se fala. Isto fica apenas implícito. É como se dele não se pudesse relembrar. E se confunde às vezes, deixando o espectador pensando que Jára é o pai das crianças, ou mesmo Tonik. Mas isto pouco importa. Ela oscila entre Jára e Tonik. Este; mais consciente de sua posição, dela não se aproveita. Pelo contrário, ela faz tudo para tê-lo e ele escorrega. Consequentemente, ela decai, enquanto dela se aproveita Jára, e Moni não vê outra saída senão entregá-la às instituições psiquiátricas. Uma aparente contradição, pois é ela que representa a resistência às novos costumes que a cercam.
Uma abordagem surpreendente para um cinema, como o tcheco não dado a nuances psicológicas e subjetivas. Um cinema de “Trens Estritamente Vigiados”, de Jiri Menzel, de “Amores de Uma Loira”, de Milos Forman. Está mais para Bergman, que centra nas relações femininas sua partida cinematográfica. Mas Bohdan Sláma não se perde em psicologismos, seu filme avança para a situação atual da classe operária tcheca e das relações entre os donos das fazendas, como Tonik e sua tia (Zuzana Kronerová), e as gigantescas fábricas em expansão. Uma dela, sempre mostrada à distância, com suas formas circulares, fumaça, em meio à vegetação cinzenta. Representa mais uma ameaça que uma solução. Nenhuma vitalidade emana de suas atividades. Tampouco das ações da fazenda, com sua cerca velha, tomada por arbustos e mato alto.
Tonik quer sobreviver com sua fazenda
É nesta dualidade que Bohdan Sláma interpõe a relação de Tonik com Moni, que oscila entre ele e seu noivo Jiri. Tonik quer preservar a fazenda, onde ele e a tia criam cabras, plantam batata inglesa e dela retiram seu sustento. Mesmo que a casa onde ambos se abrigam esteja caindo aos pedaços e requeira reformas, ele insiste em manter suas atividades. Num dos raros momentos que consegue ter privacidade com Moni, ele a leva ao telhado de onde se tem uma bela vista do campo e, sem que consiga resistir, das instalações da fábrica, com seus fornos e galpões. Ali, sintomaticamente, está o que o ameaça e também ao que ele representa. Tonik é o pequeno proprietário rural que, na expansão da estrutura capitalista, vê suas chances diminuírem todo dia. Ele a tia cultivam a terra, cuidam das cabras e carregam nas costas os enormes sacos de batata, uma forma de produção fadada ao fracasso.
O pai, um dos herdeiros da fazenda, é agora operário na fábrica e o instiga a vender a propriedade. Diz que nada o prende a ela, ainda que nela estejam as memórias de sua infância. Tonik, não, resiste o quanto pode. E nutre uma paixão não correspondida por Moni, e procura ficar todo o tempo a seu lado, ajudando-a a cuidar dos gêmeos e a evitar a derrocada de Dasha. Ela não o deixa avançar, convive com Tonik, mantendo-o a acerta distância. A seus olhos e da mãe, ele não irá “vencer na vida”, como seu namorado que está nos EUA. Esta visão impregna sua vida, instigada principalmente por Jirica, que vive a desafiar e humilhar Olda. Bohdan Sláma, porém, constrói sua narrativa a partir de pequenos gestos e da oposição entre o que significa o futuro com seu namorado e uma possível vida com Tonik.
Diretor equilibra ações com humor e ironia
Há em Moni uma persistência, uma tentativa de superar-se a partir do que permite sua sobrevivência e não apenas assentar sua vida sobre um sonho. Inexiste o esperar por vir, que pode durar anos. E ela não deverá se transformar numa Penélope à espera de seu Ulisses. Não é dada a grandes gestos, reações virulentas; é mais contida, de ficar na expectativa, mas não de se entregar. É, assim, o oposto de Dasha, que espalha sua rebeldia por todos os lados. A forma como Bohdan Sláma desamarra estes nós, centrados em personagens muito vivos e simbólicos de um país em reconstrução, traduz o não conformismo, o não se entregar às fórmulas impostas pelo sistema adotado no pós-Queda do Muro de Berlim. Seus personagens irão encontrar saídas coerentes com o comportamento tido durante todo o filme.
O irromper de Dasha durante um encontro da família, na gleba de Tonik para pegar os gêmeos Pat e Denis, mostra isto. Ela está viva e é capaz de ser dona de sua própria vida. Não bastasse isto, também Moni irá surpreender, com seu jeito comedido e centrado de resolver as coisas. Este foi o modo do diretor Bohdan Sláma dizer como seres em contradição podem encontrar soluções não contraditórias para suas vidas. “Algo Como a Felicidade” não é, entretanto, um filme cerebral, de lento escoar, típico do filme de arte dos anos 50 e 60; é vivo e ágil. Há muita dor e indecisão nas situações e no comportamento dos personagens, que o diretor contorna com humor, vivacidade e ironia, como nos instantes em que a tia de Tonik está à morte. Nada de choro. E a correlação entre a vida cotidiana e projeções político-sociais se dão no decorrer da ação, sem forçar para um lado ou outro.
São eles que estabelecem o equilíbrio, que permitem aos personagens transitar de uma ação a outra. Eles estão presos a situações que não entendem bem, o que exige reações condizentes com a visão que o entorno lhes permite. São, enfim, personagens que retratam bem o comportamento da juventude deste princípio de Terceiro Milênio, onde nada está definido e as aparências assumem o lugar do real. Da jovem com filhos, sem companheiro e sem perspectivas alguma na estrutura social em que vive, que tenta manter-se à tona, a todo custo, à que nutre certa esperança na relação a dois, mas que, no final, cede a seus sentimentos, menos idealistas ou românticos. E notadamente da compulsão pelo sexo, forma de compensar as hesitações e ausência de soluções de longa duração. Tudo muito fugaz, apressado. Este é o encanto deste “Algo Como a Felicidade”, que atesta o quanto é enganosa a busca de saída num sistema em crise.
“Algo Como a Felicidade”. “Stesti”. Drama. Alemanha/República Tcheca. 2005. Duração: 100 minutos. Roteiro/direção: Bohdan Sláma. Elenco: Tatiana Vilhelmová, Pavel Liska, Ana Gieslerová, Bolek Polivka, Smona Stasová, Marek Daniel.