“Amantes”: Amar não é fácil

Leonard oscila entre Sandra e Michelle, mas todos querem encontrar seu par. Com este enredo, diretor eestadunidense James Gray registra as dificuldades para se encontrar parceiro amoroso na sociedade do 3º Milênio.

Três pessoas precisam decidir o que fazer de suas vidas, antes que a maturidade se estabeleça e só reste o passado nebuloso e frustrante. Com esta partida, o diretor estadunidense James Gray (“Os Donos da Note”) mergulha no universo de duas mulheres e um homem, aparentemente desconectados de seu meio social. Sandra Cohen (Vinessa Shaw ) não se interessa pelos homens à sua volta; Michelle (Gwyneth Paltrow) é amante de um milionário que não se decide por ela; e, por fim, há Leonard Kradiator (Joaquim Fênix) tentando escapar à desilusão amorosa. A ligá-los apenas a necessidade de encontrar seu par e construir com ele uma alternativa para que a vida siga em frente. Dá para imaginar que uma história dessas, estruturada a partir de um triângulo amoroso, tivesse um desenvolvimento cheio de reviravoltas para, no final, um de seus vértices fosse excluído e um novo casal fosse surgisse a partir daí. Gray, no entanto, constrói sua narrativa com entrechos bem elaborados, dotados de um denso clima, que contribui para matizar bem seus personagens e escapar às armadilhas dos triângulos amorosos.

A história é estruturada sob o ponto de vista de Leonard, que trabalha na lavanderia do pai, Reuben (Moni Moshonou), depois de fechar seu próprio negócio. Ele perambula de um lado ao outro, trabalha, fica em casa, sai pela noite, sem se fixar em nada. A desilusão amorosa o desestruturou de tal forma que a vida perdeu o sentido. Tem o andar pesado, ar cansado e é monossilábico, pouco se interessando pelo que acontece ao seu redor no Brooklyn, onde mora. Essa alienação se reflete no relacionamento com os pais, com os quais vive – principalmente com Reuben. A mãe, Ruth (Isabella Rossellini), tenta contornar a situação, aceitando suas evasivas e desinteresse. Só com a clientela, ele se solta um pouco – inexiste, assim, a alienação em relação ao trabalho, embora na abertura do filme, ele cometa um desatino. Um personagem dessa dimensão exige sempre um intérprete que use pouco o corpo, que construa o personagem com mínimos detalhes, mas que transmita ao espectador o máximo de nuances.

Personagem surge na vida do outro duração a ação

Joaquim Fênix é Leonard desde o momento em que é visto, caminhando desnorteado pela rua, com um terno envolto numa embalagem plástica. O jeito como ele se move, sob chuva ou pela noite, reforça a carga de frustração que carrega. Percebe-se que ele tem um problema, muito sério de autoestima. Que é um homem destroçado. Desta forma, não é um personagem que será construído ao longo do filme, como naquelas obras em que lhes são acrescentadas camadas, tiques, até que seu perfil surja por inteiro. A maneira como Gray dirige e Fênix constrói Leonard, nada da disso acontece. As nuanças são atributos de Leonard, dele fazem parte. Nada nele irá se modificar, apenas serão aclarados, tornados mais explícitos para o espectador. Principalmente o humor sutil, a ironia e a maneira pendular com que oscila entre Sandra e Michelle. Este pendular é também o centro da narrativa de Gray, ditada pelo comportamento dos personagens. Principalmente a maneira como vão se desvencilhando de suas próprias armadilhas.

Conta para isto a forma inusitada com que os personagens são apresentados. Eles surgem na trama numa ação impulsionada por um fato em ocorrência – Sandra entra na vida de Leonard durante um evento familiar; Michelle na sequência em que ele escapa pelo corredor do prédio onde moram, enquanto ela também evade de uma situação limite. O espectador é pego de surpresa, sem preparação alguma para o que vem a seguir ou aconteceu antes. O que tornam suas entradas na história mais complexas e menos evidentes. Leonard reage a Sandra e Michelle sem entender, em princípio, o que está acontecendo. Cada uma delas tem uma característica bem nítida. Sandra, jovem, é controlada, de boa família – judia como ele – e Michelle é uma montanha de problemas. E ele, ao longo da trama, irá enveredar pela montanha russa que esta é, e o lago aparentemente tranquilo que Sandra demonstra ser.

Personagens buscam se encontrar através do outro

Daí pode-se dizer que o filme é sobre três pessoas que lutam desesperadamente se encontrar através do outro. E que Leonard pende às vezes para um lado noutras para o outro, até se definir, e Gray introduzir elementos que ajudam o espectador entender cada um dos personagens por meio dos entrechos – a ação que caminha pelo corte, clima, diálogo, situações que ele, espectador, não pode prever, pois não lhe são dadas pistas. É isto que torna “Amantes” interessante, desafiador, até. Porque Gray não dotou seu filme de uma atmosfera amorosa, de ambientes deslumbrantes, espaços abertos, eles transitam sempre por cômodos, corredores, clubes, restaurantes, telhados apinhados, nublados, imersos em sombras, o que lhes deixa pouco espaço para evadir.

Pelo contrário, estão sempre reagindo um ao outro. Em ambientes tomados pouco iluminados, refletindo seu estado de espírito. Quando estão em espaços abertos, eles se perdem. São peixes num gigantesco aquário, levando-os sempre procurar um cantinho para se abrigar. Leonard, o seu quarto, Michelle, sua cama, Sandra o sofá – uma forma de reagir, não de se integrar. Sandra, franca, anseia pelo amor de Leonard, nenhuma exigência faz. Sabe que os homens que a cercam, não a interessam. Menos ele. Diferente de Michelle, personagem denso, feito por uma Gwyneth Paltrow, sem as fragilidades de outros personagens, salvo pela poeta e romancista Sylvia Plath, na cinebiografia “Sylvia”.

Pai de Sandra tem outros interesses

Neurótica, agoniada, ela luta desesperadamente para que seu amante Ronald Blatt (Elias Koteas) se decida entre ela e a mulher com a qual ele está casado. Desesperada, ela tem momentos de loucura e de euforia. É o reflexo de Leonard, numa lente convexa. Se estende por vários centímetros e se mostra disforme. Há qualquer momento, ela poderá ter um colapso, e, então, tudo à sua volta se extinguirá. Percebe-se, pela maneira como Gray e seu co-roteirista Richard Menello projetam e expõem seus personagens, que, no universo da pequena burguesia estadunidense, por mais alma que a família Kradiator tenha, ela está sempre cheia de impasses e interesses. Este é o sentido da trama, concentrada nos três personagens, mas tendo uma subtrama que espelha mais o estágio em que as relações econômicas se encontram, do que propriamente as relações amorosas. Gray as introduz sutilmente através das negociações para a fusão da lavanderia dos Kradiator com a dos Cohen.

Uma sequência particularmente reforça esta elaboração: a conversa de Michael Cohen (Bob Ari), pai de Sandra, com Leonard. Depois de explicitar as vantagens que a fusão traria para os negócios de ambos, Michael insinua, cheio de maleabilidade, as intenções da filha e as suas próprias. Tudo não passa, em suma, de negócio, inclusive as relações, ainda que frágeis, entre Leonard e Sandra. “Tudo vai se dá bem” – ele enfatiza. Ambos, pai e filha, atraem o pendular Leonard para seu meio sem que ele atente para isto. Um mundo aparentemente tranquilo, com os papéis definidos, “futuro garantido”, satisfatório para os que comungam com suas ideias. Não sendo, de forma, alguma o caso de Leonard. Porém, o mundo de Michelle, “dividido” com Ronald, não é diferente. Suas convenções são menos elaboradas. Ela tem de se sujeitar às imposições, compromissos e escapadas dele, enquanto o milionário mostra-se temeroso sobre a vida que sua amada leva. Ele, que vive para os negócios, negligencia os sentimentos dela e, assim, os seus próprios.

Leonard vive afastado da realidade circundante

Leonard, ao oscilar entre estes dois mundos, mostra-se afastado de ambos. Interessa-lhe tão só encontrar seu par. Definição que pode se dá pela fusão de negócios afins ou pela condição amorosa de Ronald. Mas ele, Leonard, é um outsider, marginalizado, típico dos anos 60, que rompia com suas origens e optava por uma vida ao largo (Veja “Cada um Vive Como Quer”, de Bob Rafaelson). A diferença é que, como pequeno burguês, ele se vale de suas economias e da liberdade de ter rompantes, como os tidos com Michelle, quando se dispõe a viver a paixão com a intensidade que ela exige. Porém não se deixa seduzir pelas vantagens oferecidas por Cohen e a “amizade” de Ronald. Torna-se, assim, um personagem rico, simpático, menos afeito à riqueza. Demonstra que, para ele, a liberdade e a felicidade estão acima dos arranjos financeiros e matrimoniais. Em suma leitura que o espectador poderia fazer deste envolvente “Amantes”. Só que o diretor Gray dota sua trama de uma narrativa circular, levando-o a vários caminhos, com ações que demandam sua participação. Isto ocorre notadamente quando Leonard está mergulhado em situações definidoras de sua vida.

Neste momento as idéias de Gray surgem com grande impacto. Ele discute o que define o futuro de Leonard – e, por extensão, da maioria das pessoas -, com a história levando-o a uma direção sobre a qual ele não tem controle algum. Quem está no comando é Cohen, coadjuvado por Reuben. São, no seu dizer, as estruturas socioeconômicas que decidem nosso futuro, a menos que ele, espectador, e também Leonard, as modifique. Mas ele, Leonard, nada entende disto, quer apenas encontrar seu par, viver a vida. Deveria aprender com Michelle que, a exemplo de Sandra, sabe bem o que quer, e se joga de forma decidida sobre Ronald para conquistá-lo. São as mulheres, enfim, que sabem, mais claramente, aonde querem chegar. A matreira Sandra, com seu jeito direto, é a que mais age, enquanto Michelle reage até entender que também precisa agir. Entretanto, Leonard oscila entre ambas. É uma clara opção de Gray pelas evidências modernas, do rumo que as relações amorosas tomam hoje (e desde sempre) – entre o conservadorismo e os interesses, e a pura paixão.

Gray inverte uso de recursos cênicos

Há, ainda, instantes de puro cinema, quando várias sequencias se desenvolvem sem diálogos, só com ação. E uma cena é crucial – Só Leonard e Ruth sabem do que se passa – ela pela sensibilidade de entender o filho, ele por não ter nada para dela esconder. Uma hora as cenas vão numa direção, com o espectador achando que o desfecho se dará naquele espaço e momento, quando há uma reviravolta e ele então volta ao ponto de partida. Troca olhares cheios de sentidos e cumplicidade com Ruth e o que era para ser rompido termina por ser reatado, de forma inusitada. Lembra as comédias de Lubitsch (“Ver ou Não Ser”) e as de Wilder (“Quanto mais Quente Melhor”, “Beija-me, Idiota”), só que em “Amantes”, o registro é de drama. Nem música, ele, Gray, usa ao longo desta brilhante sequência. E também ao longo do filme, quando muito um ou outro acorde de piano.

Tudo se sustenta na pura imagem, nos cortes, nas interpretações do trio – Fênix, Paltrow e Shaw. Inclusive inverte o uso da janela – o tão citado recurso cênico de Hitchcock, em “Janela Indiscreta”. De o personagem apenas olhar o que se passa no apartamento em frente, como um voyeur. Ela aqui é um elemento de interação, como nas fábulas e em Shakespeare (“Romeu e Julieta”). E remete também às relações entre vizinhos nas antigas cidades, quando as ruas eram estreitas. Todo sobrado tinha uma sacada e a reduzida distancia entre um e outro garantia a comunicação. E Gray, em “Amantes”, faz uso cenográfico e dramatúrgico delas para mostrar a relação entre Leonard e Michelle e as oscilações porque passam.

Quando os entrechos estão entrelaçados, os recursos por ele usados atestam sua eficiência. Afinal, cinema se presta também ao uso dos espaços e dos elementos cenográficos e dramatúrgicos, muitos advindos do teatro, só que no filme reina a imagem e esta em “Amantes” está perfeitamente integrada à trama, à narrativa e aos personagens, centro, de toda a trama. Uma boa aula de cinema, em tempos de baixa do cinema estadunidense.

“Amantes”. (“Two Lovers”). EUA. Drama. 2009. 110 minutos. Roteiro: Richard Menello, James Gray. Fotografia: Joaquim Baça-Asay. Direção: Mães Gray. Elenco: Joaquim Fênix, Gwyneth Paltrow, Vinessa Shaw, Isabella Rosselini,Elias Koteas, Moni Moshonov, Bob Ari.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor