“Amar…não tem preço”: rindo da burguesia

Em comédia sobre casal que freqüenta hotéis cinco estrelas para dar golpe em milionários, diretor francês Pierre Salvador lança um olhar debochado sobre a burguesia de seu país.

Dois trambiqueiros que tentam “ganhar” a vida às custas de milionários em estâncias e balneários franceses enquanto levam adiante seu caso amoroso retomam um gênero de cinema hoje relegado às videotecas: as comédias inteligentes, que fazem rir e, ao mesmo tempo, lançam um ácido olhar sobre as relações de classe. Em “Amar… Não tem preço”, do francês Pierre Salvador, a jovem Irene (Audrey Tautou) vive de hotel em hotel sempre às voltas com um burguês, de preferência na terceira idade, que possa lhe dar boa vida. Esperta, porém inconstante, ela termina por jogar fora o que conquistou e parte em busca da próxima vítima. Numa destas vezes, ela encontra o supostamente bobo e rico, Jean (Gab Elmalech), num luxuoso bar, em fim de noite, e a vida de ambos muda.
                   


 


Às vezes trocam de papéis, noutras estes se invertem e de trambique em trambique, Pierre Salvador nos permite conhecer de perto a nababesca burguesa francesa, suas trivialidades e, por que não, suas fraquezas. Um deles, Jacques (Vernon Dobtcheff), sente-se atraído por Irene, mas nem tanto que não o permita enxergar as ambições dela. Outra, viúva, enreda-se de amores por Jean, tal uma adolescente temerosa de perder o amado. Não faltam situações em que a repetição da ação, da gag (a construção do riso), tenha por intento ridicularizar o comportamento burguês. Como quando Jean e Irene enrolam uma de suas vítimas, repetindo os serviços e os pratos oferecidos pelo hotel, onde estão “hospedados”.


                   


 


Irene não quer roubar, só ganhar presentes


                   


 


Numa comédia tais situações podem passar despercebidas, pois a intenção de Pierre Salvador é fazer rir, porém as posições divergentes dos personagens, os pobretões Irene e Jean, tentando ludibriar o milionário, hospedado em hotel cinco estrelas, mostram a disputa entre eles e o burguês por um naco de sua riqueza. Não se trata de ver neles simples trambiqueiros; Irene não quer roubar, quer é ganhar presentes, continuar hospedada no hotel cinco estrelas e daí, quem sabe, conseguir uma boa mesada de seu, agora, namorado. Ou seja, levá-lo a enchê-la de mimos para que ela possa manter um alto padrão de vida às custas dele. Há nisto, também, uma crítica à burguesia que, não tendo melhor aplicação para seu dinheiro, o esbanja levando uma vida nababesca. E a melhor forma de gente como Irene e Jean desfrutar desta riqueza é ludibriando-os.
                   


 


Mas não é fácil chegar ao objetivo, Irene o sabe. Esforça-se para parecer de alta classe, apurando o gosto por vinhos, roupas e estilo. Numa das primeiras seqüências do filme, a vemos recitar nomes de estilistas famosos, passeando pelas maisons francesas. Tal como Audrey Hepburn, em “Bonequinha de Luxo”, ela sabe diferenciar um bom vestido de um simples adorno. Tem classe, em seu corpo magérrimo, e um ar de quem se enfada com aquele luxo todo. Desliza por corredores, recepções e tapetes com uma leveza que a torna charmosa. Nem quando perde uma “presa” se dá por vencida. Não abandona o ambiente dos hotéis cinco estrelas, nem perde o faro para o próximo. Mantém a verve apurada, o senso de espaço e de gestos para não o deixar escapar. E lá está ela, de novo, nos braços de um ricaço que a cobre de mimos.


                     


 


Trambiqueiros disputam quem se sai melhor nos golpes


                     


 


Não se pode deixar de ver nisto, ainda que toda sofisticação encubra o subtexto, uma tentativa de Pierre Salvador dizer que os muito ricos se divertem, mas são solitários, frívolos e não atentos a quem os rodeia. Numa comédia os desencontros, as trapaças, os deslizes, contribuem para o engraçado das situações, deixando pouco para a reflexão. Menos neste “Amar… Não tem preço” em que os burgueses são sempre as vítimas. Os pobretões, Irene e Jean, em seus apertos os ludibriam a ponto de justificar seus trambiques. Aqui a comédia francesa atual se diferencia em estética e conteúdo da comédia hollywoodiana. Esta não consegue fugir das histórias de mães e filhas rabugentas, pais bestalhões e amantes idiotas, todos desligados da realidade imediata. Isto quando não apela para as correrias e pontapés de espiões e policiais, como nas velhas comédias pastelão, sem a graça e inventividade destas.
                     Se Pierre Salvador não escapa dos velhos clichês das escapadas pelas janelas, das entradas e saídas de personagens pelas portas laterais, pelo menos inova em situações que lembram as trapaças de Peter Sellers, criadas pelo diretor Blake Edwards (“Um Convidado Bem Trapalhão” e “A Pantera Cor de Rosa”), com pitadas de ácido humor. Numa delas, Irene discute com Jean, que passou de aprendiz para concorrente, qual deles conseguiria o melhor presente de sua vítima. E ele surge com um caríssimo relógio, para espanto dela. Jean evolui de um pobre garçom, confundido com um milionário, para o papel de um ágil trambiqueiro, com mais truques e manhas que Irene. Ambos não titubeiam em lançar sobre suas vítimas todo seu charme, sem piedade ou hesitação, para atingir seu intento.


                    


 


Quando plano falha mundo de Irene vem abaixo


                    


 


Nesta aparente ambição está o temor de ficar pobre, de ter de voltar à situação antiga, de trabalhar duro para sobreviver. E os burgueses estão ali justamente para que possam, através deles, não voltar à penúria. A seu favor têm a aparência, a inventividade e a disposição para continuar transitando pelo mesmo espaço que eles. Às vezes, por descuido, o plano vem abaixo, e têm que ser rápido no encontro de uma saída que os deixe próximo dos inúmeros ricaços, ainda que sejam velhos; encarquilhados e largados em suas mesas solitários. Numa dessas vezes, o plano falha e Irene se vê à beira da piscina de maiô, tremendo de frio, sem ver chance alguma de dar a volta por cima.
                    


 


É um dos belos momentos do filme, pois ali está ela, frágil, desguarnecida, insegura, desmascarada. Salva-a um instante de criatividade, tão comuns nas comédias. Aquele em que o personagem entende o que o outro precisa e o salva, sem que os demais o percebam. Bem feito, continua a funcionar. Mas é neste instante que se dá a fusão de duas das três vertentes do filme.  Pierre Salvador usa as situações para contar uma história de amor, aliada à transformação de um simples garçom num homem que desliza por ambientes luxuosos com uma desenvoltura que nem seus colegas supunham. E, principalmente, os trambiques que eles, Irene e Jean, aplicam nos burgueses franceses. Atesta a máxima de que basta a oportunidade para o ser humano mostrar seu lado de expertise.  A mais evidente é a de Jean, sob a orientação de Irene, numa disputa para ver qual deles ludibriará com mais brilho a sua vítima.


                     


 


Burguesia usa seu dinheiro para cobrir amante de mimos


                    


 


As vítimas, com suas caras de quem só é esperto para ganhar dinheiro, flutuam pelos ambientes luxuosos à procura de quem os mime e os deixe gastar o dinheiro apropriado com gente como Irene e Jean. A viúva Madeleine (Marie Christine Adam), com quem Jean se envolve, não importa se ele a engana; se prefere mulheres mais novas, desde que não o faça de forma ostensiva. Ser a outra, pouco lhe importa; desde que ele continue com ela. Usa a força de seu dinheiro para cobrir-lhe de mimos, preço a que se submete para manter a cabeça na superfície onde possa ver Jean. Um jogo duplo, sem dúvida, que, enquanto os burgueses gastam com eles, pensando que estão lhes comprando, eles se aproveitam para acumular algo que lhes permita escapar, para viver com um mínimo de conforto.
                      


 


Caso uma história dessas fosse contada em um drama, causaria, no mínimo, desconforto. Numa comédia serve para rir e ver que “passar a perna” nos endinheirados pode provocar a certeza de que é possível enganá-los valendo-se de sua própria vaidade e arrogância. O final posto por Pierre Salvador é emblemático desta certeza. Irene e Pierre compreendem que ali está uma mina, basta saber explorá-la. Um fecho dialético e amoral, igual ao dado por Ted Kotcheff, em seu filme “Advinhe quem vem para roubar”, que sintetiza com acerto os conflitos dos anos 60, ao satirizar a sociedade americana através de um executivo (George Segal) que, ao ser despedido, vira assaltante junto com a mulher (Jane Fonda) para manter seu padrão de vida (a refilmagem com Jim Carrey, não tem a mesma dualidade e encanto). Irene e Jean sobrevivem numa comédia que, sob sua aparente despretensão, se permite zombar da burguesia francesa.


 



Veja o trailer no youtube clicando aqui


 


 


“Amar… Não tem preço”. Comédia. França. 2006. 104 minutos.Roteiro: Benoit Graffin/Pierre Salvador. Fotografia: Gilles Henry. Diretor: Pierre Salvador. Elenco: Audrey Tautou, Gab Elmalech, Vernon Dobtcheff, Marie Christine Adam.

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