“As Leis de Família”: Veias abertas

Com uma análise da sociedade argentina atual, o diretor Daniel Burman mostra a tentativa de aproximação entre pai e filho, sem usar o clichê do conflito de gerações

País de constantes recomeços, a Argentina sempre dá a sensação de que só uma ruptura radical a fará retomar o caminho que a levará à plenitude sócio-econômica. Não um caminho qualquer, mas o das décadas de 40 e 50, quando teve seus tempos de glória, sob a liderança do General Péron.Nostalgia que o fez retomar o poder na década de 70 e abrir caminho para sucessivos ditadores até culminar com a tragédia da Guerra das Malvinas. E desde então ser marcada por retomadas pós-generais-ditadores, pós-Menén e pós-DelaRua, que a levou a uma de suas maiores crises institucionais. Os reflexos dessa dicotomia entre o velho, com seus costumes e relações, e o novo em busca de outras trilhas, pontilhadas pela moral e a ética, são vistas em “As Leis de Família” (Derecho de Familia), do argentino Daniel Burman. Estas manifestações estão refletidas no comportamento do advogado Bernardo Perelman (Arturo Goetz) com seus clientes e no de seu filho Ariel (Daniel Hendler), promotor público e professor de Direito, que dele se distancia à procura de seu próprio caminho.


 


         


São relações subjacentes que surgem no desenrolar de “As Leis de Família”. Burman, também roteirista, conduz seu filme de modo tranqüilo revelando os personagens aos poucos. Primeiro vê-se Perelman, em seu cotidiano de advogado, driblando a burocracia do tribunal, freqüentando bares onde se encontra com seus clientes. Não os trata com o rigor normal nestas relações entre profissional e cliente, há mais amizade, maneira de manter a clientela sem forçá-la a vê-lo como alguém disposto a ganhar dinheiro às suas custas. Depois surge Ariel em seu dia-a-dia na sala de aula. Sempre transmitindo a seus alunos uma visão ética da profissão que escolheram. E com isto, Burman estabelece a diferença entre pai e filho, entre dois mundos diversos, ou seja, com diferenciado modo de encarar o direito.



           


Centro do filme é a relação entre pai e filho


           


O centro do filme, no entanto, é mesmo a relação entre pai e filho. Perelman procura a todo instante aproximar-se de Ariel, envolvê-lo com seus clientes, fazer com que ele absorva parte de suas responsabilidades com eles. Ariel, porém, mantêm-se alheio à velha clientela do pai e dos problemas que os envolve. São duas gerações com adversos modos de tratar os problemas de uma sociedade em constante recomeço. Uma não conhece as intenções da outra, por isto se distanciam. Ariel quer fazer tudo à sua maneira, distante dos clientes, dos alunos, dos problemas que afligem as pessoas que procuram um advogado em seu escritório. Também é o modo como vê o pai: um enigma. Nada sabe de sua vida particular, como encara a viuvez, as carências surgidas daí. Só Perelman procura dialogar, trazê-lo para junto de si. Sua solidão fica patente pelo envolvimento com o trabalho, com os clientes; o jeito de quem tem neles seu “encosto”, já que o filho lhe escapa.



              


Já Ariel, em sua tentativa de estruturar sua vida de um jeito diferente, avalia cada passo que deverá dar, para não fracassar. É como se depois de tantos recomeços qualquer relação amorosa ou compromisso com clientes necessite de profunda avaliação. Não assume risco, tampouco abre espaço para a manifestação do líder universitário que interrompe sua aula para levar uma mensagem a seus alunos. A vê como uma intromissão, algo que o perturba, afasta-o de seus propósitos. É por demais conservador, ao contrário de Sandra (Julieta Diaz), a instrutora de pilates (exercícios em aparelhos) por quem se apaixona. Ela, pelo contrário, arrisca-se mais, abandona um caminho e envereda por outro, mais condizente com sua necessidade financeira. São três mundos diferentes obrigados a conviver no mesmo espaço: a Buenos Aires do princípio do Terceiro Milênio. Uma cidade, ao que parece, mergulhada em seus próprios dilemas, ainda longe de enfrentá-los de frente.


               


Ariel não quer compartilhar clientes com o pai, Bernardo
               
               


É como Ariel age em relação ao pai. Rechaça cada investida, sugestão, convite seu para partilharem clientes e escritório. Inexiste diálogo, comunicação entre ambos. Perelman, nestas situações, mostra-se mais consciente; insistente. Mesma insistência tida por Sandra com Ariel em relação a Gaston, filho de ambos. Ariel deixa a seu cargo os cuidados com a criança e ela o pressiona para que ele estreite a relação com o garoto de dois anos. Burman conduz estes fios sem os ganchos existentes hoje na maioria dos filmes, que consiste em criar uma situação e ir desdobrando-a até o desfecho. O que redunda em manipular a emoção do expectador, levando-o para onde se quer. Uma forma hollywoodiana para atrair as grandes platéias, interessadas apenas em saber como terminará a ação que lhe foi apresentada desde o início do filme. E pouco se importa com o conteúdo, normalmente reacionário. Burman, não, prefere ir acrescentando dados sobre os personagens, mostrando suas reações e construindo uma visão subjacente do país, a partir deles, personagens.



                


Estes transitam por salas atulhadas de processos, corredores estreitos, ladeados por paredes sujas, escritórios cheios de móveis velhos. Surge o clima kafikaniano, com a Promotoria sendo desocupada às pressas, sem motivo aparente. Diz-se apenas que a enorme quantidade de processos nela existente poderá fazer o prédio afundar.  Centenas de processos aparecem em pacotes, sendo levados por policiais e agentes de justiça. Trata-se, na verdade, da pesada história argentina despejada às vistas de Ariel, que pede cuidado para ela não se perder, como se, de repente, ela pudesse ser abandonada em algum porão e lá ser esquecida ou incinerada. Pedido este necessário diante de milhares de casos sem solução, a exemplo do Brasil, com centenas de desaparecidos. Tudo isto flutua, sem que Burman o explicite. Mas está tudo ali, nos tribunais, nos escritórios, nas filas de advogados em busca dos processos de seus clientes.


                   


Filho desconfia da aproximação do pai


                   


Quando Perelman tenta, por fim, a aproximação de maneira incisiva, Ariel desconfia que algo há por trás de seu comportamento. A necessidade de um escutar o outro, principalmente ele, Ariel, se impõe. Não há discussão, afrontas, acerto de contas, nenhum desses clichês que levam os personagens a se chocar. Burman deixa um vazio, algo por se resolver. Inexiste conciliação entre as duas gerações. Talvez abra espaço para uma relação mais sólida entre a de Ariel e a de seu filho Gaston (Eloy Burman, filho do diretor). A sensibilidade com que Burman trata os personagens reflete no modo como vê a sociedade argentina: precisa conviver no mesmo espaço, na tentativa de construir um caminho sem nostalgia. O diálogo de Ariel com Norita, ex-secretaria de seu pai, mostra bem isto. Ela é a parte do passado que deve ser preservada sob novas condições. O passado, com Perelman, ficou; definitivamente, para trás.
                  


 


De forma sútil, sem tecer comentários ou fazer discursos, Burman passa a limpo a história recente de seu país. Seus personagens a personificam. Passa uma emoção sem subterfúgios. E uma simplicidade e clareza dignas de grandes autores. Não há a urgência de tornar complexo o que se quer mostrar. A complexidade está no tema, não em sua  exposição. Está mais centrada nos personagens; vistos em enquadramentos perfeitos, com raros movimentos de câmera. Burman usa, inclusive, o recurso do fad in (escurecimento de cena) para mudar as seqüências, o que suaviza ainda mais a exposição. No final, sai-se do cinema com a sensação de que é possível se fazer um bom filme, sem o subterfúgio dos efeitos especiais, da violência espetacular e do sexo para atrair maior bilheteria. Enfim, um cinema honesto que respeita o público.


 


“As Leis de Família” (Derecho de Familia). Drama. Argentina/Itália/Espanha/França. 2006. Duração: 102 minutos. Direção/roteiro: Daniel Burman. Elenco: Daniel Hendler, Arturo Goetz, Eloy Burman e Julieta Diaz.
                     

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