Biblioteca América do Sul – Países Árabes

Intercalando comentários sobre crises, massacres e guerras no Oriente, esta semana dou conhecimento ao nosso público leitor sobre uma das maiores iniciativas já feitas em nosso país, ao que tenho notícias pelo menos, de divulgação e apoio à cultura á

O projeto da BibliASPA


(Biblioteca América do Sul e Países Árabes)


 


Em maio de 2005, estive em Brasília para a 1ª Cúpula dos Países Árabes com os da América do Sul. Essa idéia foi levantada pelo nosso presidente Lula, quando de seu primeiro giro por países árabes no ano anterior. Uma das conseqüências dessa Cúpula foi estabelecer convênios, acordos, especialmente na área cultural. O Projeto de Biblioteca se insere nesse contexto. Esse é um sonho que vem sendo acalantado por diversos intelectuais brasileiros sejam eles de origem árabe ou não. À frente desse projeto está o professor de árabe da USP, Dr. Paulo Daniel Faráh, também diretor do Centro de Estudos Árabes dessa Universidade.


 


A viabilização econômica e material da BibliASPA tem apoio total da Câmara de Comércio Árabe Brasileira. A página na Internet da Biblioteca, recém lançada, é www.bibliaspa.com.br e já tem inclusive, diversos livros e obras clássicas importantes, em três idiomas (que são os oficiais da página, que são o português, o espanhol e o árabe).


 


Essa grande iniciativa reforça os trabalhos memoráveis que vem sendo feito pelo Instituto de Cultura Árabe (ICA), tendo à frente a minha amiga e combativa professora Drª Soraya Smaili e do Instituto Jerusalém, dirigido pelo companheiro Ali El Khatib. Essas instituições reforçam a importância da história, da cultura, de todo o legado da civilização árabe aos nossos povos, de língua portuguesa e espanhola. Temos tudo a ganhar com tais iniciativas.


 


 


Apresentação


 


Vejam como a apresentação da Biblioteca é feita na página da Biblioteca na Internet: “O estabelecimento de relações políticas, culturais e econômicas consistentes e duradouras entre os países da América do Sul e o Mundo árabe pressupõe a construção de conhecimento mútuo das sociedades envolvidas. Os estereótipos culturais e as representações politicamente motivadas sobre o Mundo árabe e sobre a América do Sul só podem ter seu efeito negativo contrabalançado pela produção constante de saberes acadêmicos, embasados em pesquisas empíricas de qualidade, bem como pela disponibilidade de textos representativos da produção cultural árabe e sul-americana. Assim, a Biblioteca/Centro de Pesquisa possui acervos bibliográficos especializados em temas árabes, no caso da América do Sul, e em temas sul-americanos, no caso do Mundo árabe, que contemplem as principais áreas de conhecimento relacionadas às letras, artes e ciências sociais. Esses acervos poderão servir como base para o estudo e a pesquisa de estudantes de graduação e de pós-graduação, professores, diplomatas e demais interessados em adquirir conhecimento sobre a região. E importante considerar a presença contínua de comunidades de imigrantes árabes na América da Sul por mais de 150 anos, as quais participaram ativamente da construção e do desenvolvimento dos Estados nacionais e contribuem cultural, econômica e politicamente para as sociedades locais. Esse fator facilita o estabelecimento de um vínculo profundo entre a América do Sul e os países árabes”.


 


 


No capítulo “objetivos”, os organizadores da Biblioteca, fixam os gerais e os específicos, que também aqui publicamos: “Objetivos – A. Gerais: a. Promover a aproximação e o conhecimento mútuo entre a América do Sul e os países árabes e b. Incentivar a reflexão crítica, pesquisa, produção e difusão de saberes entre as regiões envolvidas. B. Objetivos específicos: a. Criar bibliotecas com acervos físicos e virtuais especializadas em temas árabes na América do Sul e em temas sul-americanos nos países árabes; b. Promover a realização de seminários, colóquios, mesas redondas, missões acadêmicas, exposições e mostras; c. Fomentar os estudos específicos e comparados e d. Incentivar o intercâmbio e a cooperação na produção acadêmica e cultural das diferentes sedes da Biblioteca/ Centro de Pesquisa” vejam que um dos objetivos específicos é traduzir obras de importância, do árabe para o português e espanhol, bem como nossas obras e as espanholas, serem traduzidas para o árabe. A aproximação pela literatura é uma das mais belas formas de colocar dois povos em contato. Sempre disse que um dia, por puro diletantismo intelectual, faria um curso de teoria literária. Sou um apaixonado pela literatura. E não podia ser diferente. Os literatos, romancistas, escritores, ficcionistas, são, regra geral, grandes sociólogos. Ao descreverem com palavras situações, épocas, conflitos, idéias, para que os leitores formem os quadros de imagens em suas mentes, conectando-se com quem as escreve, esses intelectuais estão sendo também sociólogos, dominando a ciência da sociedade. Isso é maravilhoso.


 


 


No início de nossa coluna em 2002 e até 2003, usualmente publicava ao seu final, uma resenha de algum livro sobre mundo árabe, ou mesmo de literatura árabe, traduzida para o português (Paulo Faráh, ele mesmo é tradutor – e que bela tradução – de um livro da Naguib Mahfuz, Nobel de Literatura de 1988, chamado Beco do Pilão). Pessoalmente, tomei contato com essa esplêndida literatura em 1993, de forma mais sistemática, mais científica, quando estudei língua e literatura árabe na Universidade de São Paulo. Ainda tenho imensas dificuldades na leitura da língua árabe pela sua complexidade. Mas, sejam livros em português, inglês, francês e espanhol, o pouco que conheço dessa literatura, me faz cada dia mais um apaixonado e admirador desse mundo.


 


Por isso a iniciativa da BibliASPA deve ser saudada por todos os intelectuais, de origem árabe ou não, estudiosos ou não dessa região do mundo. Desejo assim, imenso sucesso nessa empreitada ao colega e amigo Paulo Faráh.


 


Um dia, depois de uma passagem minha tão sonhada e planejada, por Damasco, Síria, terra de meus avós, sonho em fazer a atualização da tradução brasileira, direto do árabe (cuja edição em nove volumes eu já possuo), do livro El Mukhadima (em português Os Prolegômenos), do grande sociólogo e filósofo árabe Ibn Khaldun, tunisiano, que viveu entre 27/5/1332 a 19/3/1406). Khaldun, que no ano passado completou 600 anos de sua morte, foi um dos maiores pensadores e intelectuais da história árabe. A tradução em três volumes, da edição brasileira, data de 1954 e eu a estudo desde 1993 (onde aliás a comprei no famoso sebo da Praça da Sé, do amigo Faráh, que já não existe mais). Há muitos problemas nessa tradução e precisa sofrer uma revisão técnica. Esse é um projeto de fôlego, para alguns anos, com notas explicativas, referências técnicas. Isso resultaria em três volumes de pelo menos 600 páginas cada volume.


 


A primeira obra da BibliASPA


 


Chegou-me às mãos no último final de semana o primeiro livro editado por essa iniciativa da BibliASPA no Brasil. É um livro em três idiomas (o português, espanhol e o árabe). Assim, mesmo que ele deva ter por volta de umas 500 páginas, é um livro de 67 páginas de conteúdo principal (li-o num átimo). Antes de falar de seu conteúdo, devo aos meus leitores uma explicação de como esse livro, lançado no Itamaraty em Brasília me chegou às mãos. O antigo amigo e camarada Célio Turino, um historiador e escritor vigoroso, intelectual de prestígio, ao comparecer a esse evento, tratou de adquiri um para este amigo, que veio, inclusive, com dedicatória do Paulo Daniel Faráh, que fez a tradução e as notas explicativas. Esse foi um dos maiores presentes que recebi na minha vida (outro, os nove volumes do Khaldun, trazidos do Egito por um ex-aluno da Unimep, hoje advogado).


 


Trata-se de um maravilhoso escrito por um Imã (uma espécie de sábio, mistura de teólogo muçulmano com clérigo), que, em visita acidental ao Brasil (as caravelas em que navegavam mudaram de rumo e por aqui aportou em uma grande delegação otomana em 1865). Trata-se de Abdurrahman bin Abdulláh al-Baghdádi al-Dimachqi, nascido em Bagdá, Iraque. O livro chama-se “Deleite do estrangeiro em tudo o que é espantoso e maravilhoso”.


 


Uma maravilha as suas anotações. Muitas delas de caráter sociológicas inclusive. A sua história é interessante. Vindo casualmente ao Brasil, aportando no Rio de Janeiro, acabou se deparando com alguns negros, escravos, que o cumprimentaram com o famoso “Salam u Aleikon”, que, em árabe quer dizer “Que a paz esteja contigo”. Sua reação, num primeiro momento, foi achar que isso fora apenas um deboche. Mas, concluiu que haviam muçulmanos por aqui. Pediu imediatamente permissão ao comandante da missão, chefe das caravelas e da frota naval turca, para ficar em nosso país. Queria conhecer essas comunidades e, mais do que isso, ensinar-lhes o árabe, os ritos islâmicos, que ele havia percebido, não eram observados na sua integridade.


 


Assim, ele visita além do rio, onde fixa residência, as cidades de Salvador e Recife, entre outras. Faz anotações e se deleita com tudo o que vê. Fica maravilhado com a nossa terra. Tudo isso ajudado pelas 170 notas explicativas do Paulo Faráh, que ajudam os leitores leigos a entender contextos, traduções e parte da história.


 


É preciso contextualizar o momento da visita do Imã Bhagdádi ao Brasil. Esse ano de 1865 foi 30 anos depois da revolta dos Malês na Bahia, liderada por escravos negros, mas que professavam a fé islâmica. Nessa mesma época, estava em curso, na fase final, a guerra da Secessão nos Estados Unidos, quando estados do Norte lutavam contra os do Sul, escravista. Mesmo no Brasil, a luta pela libertação e abolição da escravidão já era muito intensa. E o Imã menciona isso.


 


A iniciativa dessa obra em particular, tem apoio dos ministérios das relações exteriores do Brasil, da Argélia e da Venezuela, bem como as bibliotecas nacionais desses três países. Conta com apresentações dos três chanceleres desses países e dos diretores das bibliotecas nacionais. Por fim, uma longa introdução de Paulo Faráh, que nos ajuda a compreender a borá, o seu contexto e a sua importância histórica.


 


Os leitores não encontrarão a obra em livrarias por enquanto. Mas, os pedidos podem ser tentados pelo próprio site da BibliASPA. Como dizem os chineses, “vida longa a essa biblioteca”. Que dê muitos frutos e que esta seja a primeira de muitas obras que virão.

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