Brasil: uma jangada de pedra à deriva

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Ilustração: Duke

“Quando Joana Carda riscou o chão com a vara de negrilho, todos os cães de Cerbère começaram a ladrar, lançando em pânico e terror os habitantes, pois desde os tempos mais antigos se acreditava que, ladrando ali animais caninos que sempre tinham sido mudos, estaria o mundo universal próximo de extinguir-se.”

Em “A jangada de pedra”, de José Saramago, a Península Ibérica fica à deriva pelo Atlântico depois que Joana Carda traça um risco no chão. A este acontecimento juntam-se outros, aparentemente desconexos, como a pedra que Joaquim Sassa atira ao mar, o tremor da terra quando Pedro Orce bate com os pés no chão, os estorninhos que seguem José Anaiço, e o pé de meia encontrado por Maria Guavaira no sótão e que não cessa de se desfazer. Não se pode precisar, com toda certeza, qual destes acontecimentos foi o responsável por ter separado a península do continente europeu e tê-la deixado à deriva pelo imenso Atlântico. Talvez um deles apenas, talvez uma conjugação de todos eles.

O Brasil de 2020 vive fenômeno semelhante. Não conseguimos precisar qual o acontecimento inicial, mas é certo que uma série de fatos que culminaram com a eleição do capitão em 2018, transformaram o país em uma imensa jangada de pedra, navegando à deriva pelo mar da história, sem rumo, sem um mestre a manejar o remo e lhe dar a direção.

A pandemia da Covid-19 nos pegou em meio a uma tormenta política que parece não ter fim, alimentada diariamente por aquele que deveria buscar soluções para a crise. Já são quase cinquenta mil mortos e, até agora, não há sinais de que esse galope desenfreado da morte esteja arrefecendo. Um país enlutado chora os seus mortos e o máximo que o mandatário maior do país consegue dizer como palavra de conforto aos familiares das vítimas é “que todo mundo morre um dia”. A política de saúde do governo federal para o enfrentamento da pandemia vai do escárnio à desorganização completa, passando por manifestações de xenofobia, desinformação, mentiras, negacionismo. É um caldeirão explosivo que tem levado à morte mais de mil pessoas por dia. Este quadro é agravado mais ainda pela situação econômica do país, quando já se projeta que cerca de 6 milhões de brasileiros desçam o degrau que os levará abaixo da linha de pobreza.

Ao invés de tomar as rédeas da situação e propor alternativas eficazes, o capitão Palmito ataca os governadores e os prefeitos que assumiram o comando da situação, tenta soletrar hidroxicloroquina a cada meia dúzia de palavras, e marca audiência no Ministério da Saúde para a primeira desmiolada que lhe aparece pela frente prometendo a cura da Covid através do enxofre. Não deixa de ser irônico que a mulher que afirma conversar com deus apresente como milagrosa uma substância normalmente atribuída ao demônio.

Ao menos duas vezes ao dia Palmito ataca as instituições, com predileção especial pelo STF e pelo Congresso Nacional, e cospe ameaças ao estado democrático de direito, com aqueles arroubos típicos dos valentões que andam em bando e que falam manso quando sozinhos ou quando têm pela frente alguém mais forte.

Com a prisão de Queiroz e o inquérito das fake news se aproximando perigosamente do entorno do presidente, Bolsonaro e o bolsonarismo estão à beira de um ataque de nervos. Já se falou à exaustão que Bolsonaro sobrevive no caos. Mais do que isso, Bolsonaro e o bolsonarismo se alimentam do caos, da escuridão, das águas turvas. Parece que insistem cada vez mais nisso, tentando afundar o país e o povo brasileiro nesse poço escuro de ódio, autoritarismo e desinformação. Correm o risco, neste momento, de se afogarem eles próprios na escuridão que criaram.

Enquanto esta imensa jangada de pedra fica à deriva devemos resistir e buscar saídas na unidade, com amplitude máxima e clareza total quanto ao objetivo de defender a democracia e derrotar o fascismo.

Ou isso, ou esperar que os cães até então mudos ladrem e o abismo do qual nos aproximamos nos engula de uma vez.

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