Caminhos da maternidade no Brasil
Penso que o feminismo pode e deve lutar pelo direito de escolha das mulheres, que todas devemos ter acesso ao planejamento reprodutivo, escolher ter ou não filhos e quando tê-los.
Publicado 09/05/2021 11:01

A maternidade e o feminismo têm em comum o atravessamento pela política. E, apesar de muitos pregarem a separação destes dois primeiros, penso que não é possível um feminismo que não tenha a maternidade como pauta e que uma maternidade que nega o feminismo, tem muito a perder. Respeito, obviamente, as mulheres antifeministas que se vêem numa cruzada imaginária contra o bicho-papão. Mas, considero patéticos os discursos que convocam o retorno para o lar, um privilégio burguês daquelas que dispõem de marido economicamente suficiente para sustentar-lhes. A mulher trabalhadora não tem como voltar para o que nunca teve, ela tem trabalhado desde sempre, em casa e no mundo.
Se por um lado o feminismo vai discutir a maternidade compulsória e o direito de escolher ser mãe ou não, por outro vai debater as condições sociais e políticas para o exercício dessa maternidade, inclusive os direitos das crianças e adolescentes em uma ordem patriarcal de silenciamento e opressão. Meu intuito é o de refletir, neste dia das mães, a respeito de um cenário desolador, quando as brasileiras têm diante de si a morte.
O senso comum, influenciado por estereótipos patriarcais, associa feminismo à rejeição da maternidade, quando, na verdade, movimentos e teorias feministas têm discutido, há décadas, o direito de escolha das mulheres. A maternidade compulsória é um sério problema, que atinge milhões de adolescentes e mulheres que são condenadas à pobreza em decorrência das dificuldades impostas e à ausência de políticas públicas que lhes garantam direitos básicos.
A maternidade como vocação é uma ilusão cruel que aprisiona mulheres em todo mundo. Somos ensinadas, desde a primeira infância, que é preciso ser mãe para tornar-se mulher. E há uma utilidade nessa associação entre feminino e materno, que é a exploração da capacidade reprodutiva dos corpos de mulher. É preciso que mulheres enxerguem a maternidade como “natural” para que o sistema continue a funcionar. “A máquina de fazer filhos é nossa condenação” como vai dizer Lina Meruane em “Contra os Filhos”.
E mesmo aquelas que podem escolher, que têm seus direitos sexuais e reprodutivos garantidos e conseguem acessar o planejamento reprodutivo, enfrentam os dilemas de ser mãe e profissional, porque o mundo do trabalho capitalista é sobretudo hostil às mães. Como se não houvesse lugar possível, nos convencem da maternidade enquanto destino e nos mostram que não há espaço para mulheres que desejam ser mães e ter uma carreira. Mesmo em distopias cinematográficas, a base de exploração de uma sociedade pós-apocalíptica é o corpo feminino, é o útero materno como combustível para reprodução do sistema. Impossível não recordar do contexto de Mad Max: Estrada da Fúria (2015) em que Furiosa, interpretada por Charlize Theron, atenta contra a estrutura patriarcal, iniciando um plano de libertação das mães, todas elas escravizadas, da Cidadela. Lembro ainda da série The Handmaid’s Tale (O Conto da Aia), também um mundo pós-apocalíptico de uma sociedade estamental na qual as mulheres férteis são propriedade do Estado e têm sua capacidade reprodutiva explorada.
No mundo real as mães são diariamente bombardeadas com as mais variadas modalidades de violência, e a palavra é uma delas. Todo mundo tem algo a dizer sobre como devem exercer sua maternidade e ninguém se dispõe a ouvir as dificuldades, angústias e medos dessas pessoas. Porque a maternidade é, antes de tudo, um ideal de perfeição que silencia e desumaniza. A mãe é uma pessoa, mas, lhe reduzem ao lugar de mãe, que não sofre, não deseja, não goza, não ama nada além dos filhos e que não pode falar sobre o que também existe de difícil nesta experiência. A maternidade perfeita me parece, antes de tudo, um processo de alienação de si.
Uma ressalva é que os comentários até aqui cabem, majoritariamente, às mulheres brancas de classe média e alta, a mulher burguesa. Porque às mulheres negras é negada a feminilidade e a própria maternidade. Desde o período colonial, quando mulheres escravizadas eram violentadas e estupradas de modo sistemático e tinham seus filhos sequestrados, até os dias de hoje, quando essa herança colonial persiste no genocídio de jovens negros, na esterilização compulsória, na violência obstétrica e na alta mortalidade materna de mulheres negras.
Lélia Gonzalez, em “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, discute três possibilidades de representação da mulher negra que a articulação entre racismo e sexismo produz: a mulata, a doméstica e a mãe preta. Esta última, Gonzalez diz que “simplesmente, é a mãe. É isso mesmo, é a mãe. Porque a branca, na verdade, é a outra. (…) A branca, a chamada legítima esposa, é justamente a outra que, por impossível que pareça, só serve prá parir os filhos do senhor. Não exerce a função materna. Esta é efetuada pela negra. Por isso a “mãe preta” é a mãe. (…) A função materna diz respeito à internalização de valores, ao ensino da língua materna e a uma série de outras coisas”.
Esse processo de configuração da mulher negra como mãe preta da criança branca, oriundo de uma sociedade brasileira herdeira do colonialismo português, é a chave para fenômenos atuais que testemunhamos no país da Chacina do Jacarezinho. A mulher negra não pode ser mãe dos próprios filhos; a ela cabe a maternidade dos filhos do senhor, uma maternidade nomeada de trabalho e que revela a exploração desta economia de esgotamento dos corpos, nomenclatura utilizada por Françoise Vergès em “Um Feminismo Decolonial”.
Por isso que este corpo de mulher negra sofre mais violência obstétrica e morte materna, por isso que este corpo de mulher negra é alvo das políticas de esterilização compulsória do Estado racista e patriarcal. O feminismo que fecha os olhos para o racismo estrutural não é novidade, pois, desde as sufragistas que o movimento pela igualdade entre homens e mulheres apaga as mulheres negras e propaga a desumanidade de homens negros, como Angela Davis aborda em “Mulheres, Raça e Classe”.
E o que tudo isso tem a ver com o dia das mães? Neste ano, milhares de mães brasileiras não poderão comemorar o segundo domingo de maio com seus filhos. Muitas por causa da pandemia, que demanda distanciamento social. Outras tantas porque perderam seus filhos para a Covid-19, sendo que já existe vacina para a doença e o Governo Federal negou pelo menos 11 ofertas de aquisição. E outras, porque tiveram seus filhos assassinados pelo Estado brasileiro.
Penso que o feminismo pode e deve lutar pelo direito de escolha das mulheres, que todas devemos ter acesso ao planejamento reprodutivo, escolher ter ou não filhos e quando tê-los. Porém, é preciso reconhecer as desigualdades que atravessam essa luta. É possível discutir a maternidade burguesa de Instagram e as dificuldades que as mães enfrentam no mercado de trabalho. É possível demandar do Estado o direito ao aborto legal, seguro e gratuito, e o extermínio da população negra. Estas pautas não são excludentes, apesar de, obviamente, cada sujeito ter suas prioridades de luta.
Me preocupa, em especial nesse momento em que o contexto político nacional é o de ataque aos direitos mais fundamentais, a superficialidade com que a internet, e seus influenciadores, lida com temas que demandam responsabilidade de fala, como racismo e sexismo. Por isso, escrevi esse texto, para levantar perguntas, reflexões, pois é no questionamento que o feminismo cresce e transforma o mundo.