Cantar ''incelência'' é um dom, uma arte e uma deferência
Aquele que ''ora é particular, pequeno e próximo; ora universal e infinito, pois o sertão é o mundo''. Ou, melhor, ''o sertão é dentro da gente''
Publicado 23/04/2008 18:11
Gosto de ''cismar''. Ou seja, de pensar insistentemente nas coisas… Uma das reflexões filosóficas que mais me instiga é sobre o viver, o tocar a vida, o caminhar e o estar indo… Sobretudo fascina-me que cada momento é único e jamais acontecerá outra vez.
Tenho a pachorra de vivenciar cada fato, cada momento, de absorver e ficar embevecida com a singularidade de cada um. Podem ser alegrias, mas também tristezas. Questões pertinentes ao usufruto da vida exercem magia sobre mim. Então decidi que era chegada a hora de escrever um romance que enfatizasse a concepção filosófica de que a vida é travessia. Mas que exibisse também minhas raízes e vivências sertanejas.
Durante um ano e seis meses pensando, especulando e conjecturando, escrevi ''Reencontros na Travessia: a tradição das carpideiras'' (no prelo da Mazza Edições). Aprendi muito. Nele conto histórias de amores, ancorada na vida da tia Lali, uma carpideira sertaneja.O vocábulo carpideira é derivado do verbo carpir, do latim carpere (arrancar cabelos e barbas em sinal de dor).
As carpideiras portam o dom de carpir, presente na cultura de diferentes povos, em todo o mundo, pois carpir é um ritual antiqüíssimo de encomendar o corpo de quem morreu para que sua alma ascenda aos céus.
É um rito de passagem do mundo terreno para a eternidade. Não é encenação e nem choro falso. Ser carpideira é um dom, o de chorar e cantar ''incelências'' em deferência a quem morreu, pois a morte para as carpideiras também integra a visão filosófica de que sendo a vida uma travessia, ela também é parte da travessia, pois viver é sempre um estar indo… Sou uma eterna apaixonada pelo sertão.
A minha paixão pelo sertão permite que o sertão viva em mim. E eu o carrego, sempre. Onde estou, está o sertão.
''Reencontros…'', de algum modo é uma ode ao sertão, pois é ambientado em Grotões dos Bezerras – cidade imaginária, que pode ser qualquer lugar no sertão – com sua gente simples, seus sistemas de moralidades, baseados na lei da reciprocidade; suas parteiras; suas fés que se agigantam no romance, provocando alumbramento através das benzedeiras, rezadeiras, tiradeiras de benditos e de ladainha em latim, e também cantadeiras de ''incelências''; e suas festas memoráveis, onde a comida faz parte dos rituais festivos.
Sem falar que a ''comida do sertão'' encerra um patrimônio cultural de valor incomensurável, com suas receitas seculares, as do cotidiano e as de festas – as chamadas refeições fidalgas, de banquetes. Ao contar a história do amor de Cacá e Pablo, sinto que ''tirei'' um bendito, cantei uma ''incelência'', enfim imaginei uma deferência às ''mulheres rosianas'' do mundo – mulheres sábias que reconhecem os meandros das ''neblinas de Siruiz''.
Se ''alembre'', isto é o sertão! Saiba: no sertão é assim. A minha paixão pelo sertão, esse ''desertão'' que vive em meu peito, que conforta e acaricia o meu viver – que no dizer de rosiólogos ''é uma paisagem mental. É o pensamento sobre o Brasil.
O sertão, aquela região selvagem onde se formamas nossas idéias'', pariu ''Reencontros…'', que ofereci à minha neta Luana e ao meu neto Lucas, pelo amor que lhes tenho, mas também como um tipo de penitência diante das reclamações deles que ''a vovó gosta muito de ficar no computador…''
Eu lhes prometo que nunca mais me disputarão com nenhum livro, pois sinto que ''Reencontros…'' é o livro que sonhei escrever. É o meu legado de fragmentos da memória cultural da gente simples e do cantar dos grilos do sertão, que eu desejo que um dia vocês aprendam a amar.