“Cheiro do Ralo”: Mal estar do sistema

Diretor Brasileiro Heitor Dhalia usa o dinheiro e o “olhar” exterior para analisar o comportamento humano numa sociedade em que tudo tem valor de mercado

Nesta etapa histórica em que todas as ações humanas têm cotação no mercado, o filme “O Cheiro do Ralo”, do brasileiro Heitor Dhalia, exacerba esta tendência mostrando o quanto elas influem no cotidiano das pessoas. Muitas vezes são peças com valor sentimental que são vendidas a preços simbólicos. Noutras, sem o que vender, duas personagens vendem a si próprias. Em cada uma dessas situações, o que conta é a relação de troca entre o cliente, normalmente um ser em condição aflitiva, e o dono da loja de objetos usados, que paga apenas aquilo que acha que deve não o que vale. A situação em que se encontra o pobre cliente vale pouco ou quase nada. Então, o que conta não é a mercadoria em si, porém, o estado – o mais baixo possível – que ele, o cliente, se encontra.



                


Lourenço (Shelton Mello), o dono da loja, é exímio manipular desses clientes, seres mal vestidos, esqueléticos, na mais completa penúria que todo dia o procuram. As prateleiras de sua loja estão abarrotadas de peças, muitas vezes inúteis, que reflete o quanto de lixo se acumula nas relações cotidianas. Ele pouco se dá ao prazer de catalogá-los, verificá-los, são apenas amontoados. O que mais lhe interessa são as trocas feitas com os seres aflitos que vendem suas peças de grande valor sentimental por valores baixíssimos, com a justificativa de que o fazem por necessitar de dinheiro. Ele mal os escuta, apenas fixa o preço e passa o dinheiro, numa impessoalidade tramada com frieza e escárnio.


               


Arte como reflexo do mundo real


               


É desta transação que ele tira prazer e divertimento. Às vezes nem se fixa no interlocutor ou ouve suas explicações. Pode-se sentir asco, ódio, repulsa por este seu comportamento, mas acaso nas transações cotidianas do mundo real é diferente?  Ou a arte seria isto mesmo: um reflexo do que se vive mediado por símbolos, imagens, e organizado segundo uma história na forma de cinema? Difícil contestar. Há nesta relação entre Lourenço, o explorador, e os clientes, os explorados, uma simbiose. Estes contestam muitas vezes os valores que lhe são oferecidos, diante de suas necessidades; Lourenço por sua vez lhes paga o que acha que deve pagar; caso contrário não obterá o lucro necessário à continuidade de seu negócio. Ele mesmo coloca as coisas desse modo. Estranho que, no sistema capitalista, fosse diferente.


 


               
Sente-se que, desta forma, a perversidade de seu comportamento não destoa em momento algum do que é comum nas relações de troca capitalistas. Alguém tem algo de valor a vender, alguém aceita comprá-lo, e, neste caso, mesmo sendo este valor sentimental, só tem validade para quem o detém não para quem vai adquiri-lo. É o caso do ”olho”, da “perna mecânica”, da “caixinha musical”, que pode virar, de repente, um objeto surreal. Quando isto acontece, “Cheiro do Ralo” troca o campo das relações de troca pelas infindáveis bizarrices, flertando com o Buñuel de “O Anjo Exterminador”, em que animais invadem uma festa burguesa, e o Fellini de “E la Nave Va”, com sua galeria de excêntricos e estranhos personagens. Estes, na maioria das vezes, perdem a relação com o espaço da loja de objetos usados e criam outros à sua semelhança, sempre deslocados, carentes, clamando por piedade para o deleite de Lourenço que pouco se apieda desse seres deserdados.



               
Há equilíbrio entre o mundo real e o simbólico



               
Às vezes esta estranheza, assume o caráter simbólico, do cheiro do ralo que o incomoda Lourenço e o obriga a se justificar perante seus clientes. No entanto, Heitor Dhalia não unifica símbolos e situações esquisitas, elas se sucedem ao longo do filme sem ganhar corpo. Há um equilíbrio entre o mundo real e o bizarro. Principalmente, quando Lourenço deixa a loja e entra no bar. Ali está o mundo em que ele perde o comando. Outras regras estão estabelecidas, ele não as pode romper. Joga, mas de forma diferente. Encontra na Garçonete (Paula Braun) seu objeto de desejo, aquela que o faz prisioneiro, pois não a pode manipular. Pelo contrário, ela o tem nas mãos, só não sabe dominá-lo. As circunstâncias o fazem para ela. Tem algo que ele quer; não da forma como ela imagina, sim como ele objetiva, de acordo com a visão de que tudo tem um preço e isto lhe dá prazer.



 
                
O que é espontâneo perde, para ele, o interesse. Não o prende, o mantém atento e ligado. Mesmo assim, ele não consegue seu intento. Suas regras não funcionam no mundo real. Perdeu a capacidade, como ele mesmo diz, de amar, de gostar das pessoas. Ele só as odeia. Dhalia faz dele completo mau caráter, que se delicia com as fraquezas humanas, as confissões desajeitadas, inócuas, e atira seu dinheiro sobre os pobre clientes sob seu completo controle. Interessante que “Cheiro do Ralo” ao escapar ao realismo não cai no hermetismo, daqueles que o público precisa montar a charada, entender de psicologia, de psicanálise, e desmontar o quebra-cabeça. Tudo é muito simples, claro, com as peças se encaixando a medida que o filme avança.


 



                 
Atores contribuem para a qualidade do filme



   


             
Muito se deve à direção, às situações criadas pelo roteiro e, principalmente, pela interpretação de Shelton Mello, e, porque não, das personagens interpretadas por Paula Braun e pela estupenda Silvia Lourenço. Tudo está no lugar. A brutalidade de Lourenço não o torna odioso, é, pelo contraio, presa da própria estrutura que criou. Enquanto se manteve frio, distante, centrado em seus objetivos, seus negócios caminharam a contento. Bastou deixar-se curvar aos encantos da garçonete para perder a compostura. Dhalia o faz perder-se no olhar, na fixação por um traseiro, em algo inacessível, porquanto insistisse em tê-la segundo as regras de troca. Nesta época em que imagens proliferam, influindo na vida de bilhões de pessoas, é o olhar que o leva à derrocada.



 
               
Interessante que o “Olho” que a tudo vê é um truque para que ele monte um passado para si, através da possibilidade de seu pai ter participado dos combates em Monte Castelo, durante a Segunda Guerra Mundial. E também o que o levará a ver não mais com objetividade, com o distanciamento necessário seus negócios; começa a ver as pessoas como elas são. Paranóicas, assustadas, prisioneiras de seus vícios. Não é outro o caso da Viciada (Silva Lourenço), com seus objetos imprestáveis, vendidos para mantê-la “lúcida”. Sucumbe até a uma conversa com a empregada da qual desconhece o nome. Tudo porque vê não através de seus olhos, mas daquele que adquiriu e montou para ele uma história.


 



                 
Público vê o mundo com “olhar” exterior


 



                 
É um “Olho” à disposição de um objetivo distante da vida solitária vivida por Lourenço. Sua vida restringe-se ao circular, repetir, andar por ruas desertas, muros opacos, até entrar por uma porta sem identificação qualquer e mergulhar num ambiente kafkaniano. Talvez se esteja olhando as coisas com um olhar que não seja o nosso e sentindo o cheiro de ralos que exalam nosso próprio odor, pútrido e mal cheiroso. É bela a cena em que ele, finalmente, adquire características humanas ao sucumbir aos encantos de seu objeto de desejo. E, para não estragar o prazer de quem ainda não assistiu ao filme, não se trata  de paixão por um ser por inteiro,  mas por aquela parte dele adorada por milhões de brasileiros. Muito do que se faz hoje provém da insistência dos olhares eletrônicos, da banalização das imagens por eles reproduzidas. O que leva a uma sexualização brutal, a produzir muitas tensões e raros relaxamentos.


 


                
Engraçado – e são muitos momentos cômicos em “Cheiro do Ralo” – é que o dinheiro, notas e notas, é o personagem principal. Rouba a cena inúmeras vezes. Numa delas voa a todo instante, enquanto Lourenço se diverte com uma de suas clientes. Ele, o dinheiro, surge de caixas e mais caixas, que num filme com maior orçamento, se multiplicaria a partir de efeitos especiais. E ele espalha-se, se mostra banal diante de quem dele se desfruta. É um dos raros momentos em que Lourenço se diverte e o dinheiro perde o sentido. O cheiro, o dinheiro, o “olhar” são, assim, reflexos de uma sociedade que reacende a péssimos odores, povoado que está por relações pútridas, que podem acabar por tragar aqueles que os produzem.


 


O Cheiro do Ralo”. Drama. Brasil, 2006, 112 minutos. Direção: Heitor Dhalia. Elenco: Selton Mello, Paula Braun, Silvia Lourenço.


 


(*) Prêmio Especial do Júri e de Melhor Ator (Selton Mello) no Festival do Rio 2006. Prêmio de Melhor Filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.



        

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor