China: a (falsa) polêmica da legalização da propriedade privada (1)

Com a resolução da última reunião da Assembléia Popular Nacional na China, em que a propriedade privada foi devidamente legalizada, surgiu um prato cheio para os apologistas da “economia natural do socialismo” (1). Mais uma vez, uma estéril polêmica foi l

Já que este espaço também está voltado para a formação militante (2), acredito ser oportuna uma conversa sobre alguns pontos de vista consagrados pelo desenvolvimento da teoria marxista, antes de partirmos para a análise da legalização em si.


 



O socialismo e as leis econômicas


 


Infelizmente, esse debate ainda é pautado por uma boa dose de religiosidade. Assim fica complicado perceber que a diferença entre o capitalismo e o socialismo não se encontra no processo de acumulação em si (são idênticos) e sim na capacidade engendrada pelo socialismo em intervir – conscientemente – na realidade com instrumentais que permitam a utilização dos caracteres intrínsecos das leis econômicas a seu próprio proveito. Tais instrumentais são necessariamente o planejamento e a propriedade social dos meios estratégicos de produção.


 


 


Aliada ao planejamento, a propriedade social dos meios de produção elimina o caráter antagônico das relações de produção e, portanto, suprime o obstáculo constituído pela recusa – em nome dos interesses de classes privilegiadas – de utilizar a possibilidade de as leis econômicas atuarem de maneira intencional e conforme a vontade da sociedade.


 


Desta forma, o caráter anárquico da produção dá lugar à construção consciente do futuro pelo próprio homem, como acontece na China, que cresce há quase três décadas de forma rápida e duradoura (afinal tem internalizado tais instrumentais, além de possuir – como pré requisito – uma superestrutura de poder popular), imune às crises e independente dos desejos e vontades daqueles que, por acreditarem ser o próprio “Deus”, acreditam também que um dia poderão pautar o movimento de rotação da Terra.



 
Apesar do socialismo permitir a superação do caráter espontâneo das leis econômicas, tal permissão não se estende sobre o caráter objetivo de tais leis. Esta confusão levou muitos a acreditarem (R. Luxemburgo e N. Bukhárin) que sob o socialismo as leis econômicas deixariam de existir. Ou seja, sob o socialismo seriam abolidos a economia monetária, troca mercantil, propriedade privada, a lei do valor e inclusive a Economia Política como ciência. Ainda bem que Lênin – naquela época – os colocou nos deus devidos lugares (3).


 



As categorias da Economia Política


 


Ora, se das relações homem-natureza surge uma síntese sob forma de forças produtivas produzidas e/ou reproduzidas, necessariamente, as relações de produção passam por transformações qualitativas. Desta contradição básica surgem as determinantes principais da ação das leis econômicas, que por sua vez, no concreto dão margem a outros tipos de leis (leis técnicas, de balanço de produção, do comportamento dos homens e do entrelaçamento das ações humanas).


 


 


Da síntese de tudo isso na ação sobre o concreto surgem categorias historicamente dadas da Economia Política. São historicamente dadas, pois dependem de condições objetivas e subjetivas à sua superação. As condições objetivas dependem do desenvolvimento rápido ou não das forças produtivas materiais, e as subjetivas estão condicionados a transformações no âmbito da superestrutura.


 


 


Entre as categorias históricas, citamos pelo menos três: a propriedade privada, o mercado e a lei do valor. Como categorias criadas de acordo com determinadas leis, não são passíveis de superação pela simples ação humana. A superestrutura muda (socialismo na China sob bases materiais escassas) e possibilita um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas, numa busca incessante pela harmonia entre superestrutura e base econômica.


 


 


Repetindo: as forças produtivas desenvolvem-se em concordância com leis. Por exemplo, é impossível a transformação de pequenos lotes em grandes comunas sem que ao menos uma base em maquinários esteja disponível. Caso contrário o colapso econômico é iminente (Grande Salto na China, p. ex.).


 


 


A historicidade das categorias da Economia Política por si só já é suficiente para desmontar essa falsa polêmica. Não podemos esquecer que a China ainda convive em seu território com rincões onde instrumentos de trabalho do século 18 são a principal inovação tecnológica acessível àquela população.


 



Socialismo, pequena produção mercantil e empreendedorismo


 


O socialismo tem por objetivo, sim, superar o império da propriedade privada. Porém, a qual socialismo nos referimos: ao socialismo plenamente desenvolvido na França, Inglaterra ou Alemanha (segundo Marx) ou ao socialismo em etapa inicial numa formação social periférica? Quando falamos em uma formação social onde 60% da população vive no campo sob as mais variadas condições, compondo uma sociedade com subjetividade arraigada de valores de uma quadri-milenar pequena produção mercantil (leia-se também economia de mercado), coloca-se uma questão: utilizar ou não esta mentalidade mercantil a favor do socialismo? Lênin respondeu satisfatoriamente esta questão (“Como Organizar a Emulação?”, Tomo III das Obras Escolhidas) afirmando que uma das particularidades do socialismo reside na recuperação do papel empreendedor da pequena produção mercantil. Empreendedorismo este “enterrado” nos auspícios do capitalismo monopolista.


 


Esse é o “x” da questão: ser a favor ou não do desenvolvimento das forças produtivas (criação de condições objetivas à superação do mercado, da propriedade privada e da lei do valor) e, conseqüentemente, do socialismo. Mais: na medida em que os chineses não trabalham com a hipótese de uma 3º Guerra Mundial confrontando os dois sistemas antagônicos, e na trilha de Lênin acreditam que tal batalha foi transferida para o campo do comércio internacional, será dispensável uma mentalidade comercial milenar por uma simples questão de aforismos ideológicos?


 


As contradições inerentes são parte do processo de desenvolvimento. Felizmente, ou não, as coisas são assim.


 


Na próxima semana continuamos nossa conversa tratando do que é essencial: o processo de acumulação socialista e o papel da empresa privada em tal.


 


(continua)



Notas:


 


(1) Por “economia natural” entende-se a produção voltada ao autoconsumo. Por “economia natural do socialismo” compreendo como uma forma de organização societal idealizada pelos “populistas” russos do início do século passado para quem do Mir (mundo em russo) rural germinariam as bases de uma sociedade socialista. Não muito diferente de grande parcela da esquerda brasileira para quem uma “fantasmagórica” reforma agrária seria a pedra angular da solução dos nossos problemas imediatos e serviria como elemento nodal de nossa transição ao socialismo. Mais conseqüente, radical e profundo foi Ignácio Rangel que vislumbrou a nossa transição ao socialismo pela estatização do comércio exterior e aparelhamento de nosso capitalismo financeiro. Partindo do princípio da complexidade da formação social brasileira (redundando em transições lentas, graduais e seguras), – em Rangel – tais medidas nos aproximaria do socialismo pela via do que Lênin convencionou chamar de “Capitalismo de Estado”. Mais detalhes da visão de Rangel acerca de nossa transição ao socialismo estão presentes em “A Inflação Brasileira” (do autor) e no Capítulo 7 (“O Pensamento Independente de Ignácio Rangel”) do indispensável livro de Ricardo Bielschowsky: “Pensamento Econômico Brasileiro: O ciclo ideológico do desenvolvimentismo”.


 


(2) Caro(a) e paciente leitor(a): não se furte em enviar críticas, opiniões, sugestões e dúvidas para mim no e-mail acima indicado. Ficaria muito contente pela oportunidade de estreitamento de contato.


 


(3) A “historiografia recente” brasileira (surgida na década de 1960), difundiu um método de análise da formação social brasileira que liquida com o essencial – para Marx -: que é a análise do processo de acumulação, ou seja, “eliminaram” a necessidade de utilização da Economia Política como ciência. Daí existir um senso comum em torno de teses como o Escravismo Colonial, “agricultura familiar” e alhures é apenas um passo. Daí – também – descrever nossa revolução burguesa (Brasil) sem conseguir explicar a transformação da pequena produção mercantil em indústria é apenas – mais – um passo. Passo importante seria resguardado na conclusão de Marx (“Formações Econômicas Pré-Capitalistas”) que se arremete ao fato que liga feudalismo com pequena produção mercantil e indústria: só existiu indústria onde teve pequena produção mercantil que por sua vez – dadas as crescentes inovações tecnológicas – germinou de modos de produção servis (feudalismo e/ou modos de produção asiático e germânico). Enfim, quero deixar claro que o domínio da Economia Política como ciência é pré-requisito fundamental para aqueles interessados em decifrar realidades e/ou formações sociais complexas como o Brasil e a China. Fora disso ficam criadas condições objetivas ao superficial e ao religioso. Este exemplo demonstra que a história está aí se repetindo, quase sempre sob forma de tragédias.

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