Cinco anos sem Bertran

Parece que foi ontem, mas neste dia 2 de outubro lembramos cinco anos que o destino levou o historiador Paulo Bertran, seguramente a pessoa que melhor estudou o Brasil Central. Sua vasta obra (livros, artigos e outros registros) é indispensável para entender o Brasil inteiro.

Seu nome completo é, digamos, bem pouco goiano: Paulo Bertran Wirth Chaibub. Mas ele nasceu em Anápolis, Goiás, em 1948. Sua paixão pela História era, pois, de berço. Goiás acabava de renascer, com a construção de Goiânia e a jovem Anápolis recebia a ferrovia que fazia parte da Marcha para o Oeste do presidente Getúlio Vargas.

Bertran fez graduação na Universidade de Brasília (UnB), depois foi estudar na França. Chegou a lecionar, mas os gabinetes acadêmicos nunca foram sua praça. Sempre trabalhou com fontes primárias. Era rato de arquivos e vasculhou o Planalto Central de cabo a rabo, a pé, em lombo de mula ou na boléia de caminhão.

Passei bons bocados com ele em andanças. Uma vez, porém, resolvemos fazer uma viagem a Salvador, Bahia, para lazer. Traçamos um roteiro a partir de Brasília, quase todo por estradas de terra, pelo Sertão e a Chapada Diamantina. A ilusão era de chegarmos em dois dias, mas em cada canto tinha um fórum, um “arquivo” humano, uma casa diferente e as praias ficaram esperando.

Aliás, chamá-lo de historiador é muito pouco. Geologia, geografia, botânica, indigenismo, arquitetura, engenharia, antropologia, culinária, artes, em tudo ele se aprofundava. E de um modo belo, com textos que parecem ter alma. Testemunho maior disso é do escritor Bernardo Élis, também goiano, na apresentação que fez para um dos livros de Bertran.

Élis lamenta ter escrito parte de suas obras, editadas mundo afora, antes de surgir Bertran. No seu primeiro grande sucesso literário, o romance histórico “Chegou o Governador”, Élis conta que se baseou em escritos baianos e mineiros sobre hábitos e costumes (inclusive armas e paramentos militares) da época.

“Quem me dera pudesse ter contado com a obra de Bertran”, escreveu. E arremata: “Em 1976, quando escrevi o livro “Estado de Goiás”, para a coleção Nosso Brasil, falei sobre sesmarias, baseado em textos de um alto funcionário do governo, mas estava tudo errado, como me demonstra Bertran”.

“Formação Econômica de Goiás”, “Uma Introdução à História Econômica do Centro-Oeste do Brasil”, “Notícia Geral da Capitania de Goiás” são alguns de seus livros. O mais exuberante, no entanto, é o “História da Terra e do Homem no Planalto Central”, com o sugestivo sub-título “Eco-história do Distrito Federal, do Indígena ao Colonizador”.

O livro remonta toda a história da ocupação do Planalto Central, do Descobrimento aos anos 1990, o que inclui, portanto, a construção de Brasília. Como o título diz, não se trata da história das elites. É a história da gente que ali chegava, do índio que ali morava e da sua relação com o ambiente do Cerrado.

Aliás, Bertran travou severa batalha para corrigir uma falha da Constituinte de 88, que, ao tratar dos biomas nacionais, deixou de fora o Cerrado. E Cerrado com “C” maiúsculo, como Amazônia ou Mata Atlântica. Até porque, como dizia e demonstrava, o Cerrado tem importância muito maior do que se difunde até em cartilhas escolares.

Há perto de 60 milhões de anos, quando ocorreu a separação dos continentes, os rios de onde hoje é o Brasil corriam à Oeste. O soerguimento dos Andes forçaram sentido contrário. A Amazônia era Cerrado. Só há 20 mil anos – ontem, portanto — houve o barramento na foz do rio Amazonas. Águas se espraiaram e mata cresceu.

Isto explica a existência de grandes áreas de Cerrado no Amapá, Roraima e toma grande parte da Venezuela, com o nome de “savana”. O bioma começava na fronteira Rio de Janeiro/São Paulo e era denominado “campos gerais”, daí as cidades de Santo André dos Campos Belos, São Bernardo do Campo, Campinas…

Foi da familiaridade com o Cerrado que Anhanguera II, já com idade avançada, desbravou a região e criou comunidades. A primeira delas, em 1727, foi a que é hoje Cidade de Goiás, capital do estado até a década de 1940. Foram quatro anos de andanças, que Bertran relata com maestria.

Bertran demonstra, entre tantas coisas, que Bartolomeu Bueno da Silva filho, o Anhanguera II, era diferente de seu pai, que devastou o vale do São Francisco. O filho nunca teve atritos com índios nem maltratou escravos.

Mergulhou, também, nos relatos de viajantes estrangeiros, como Saint-Hilaire, Von Martius e Pohl, que estiveram na região por longos períodos nas primeiras décadas do século 19.

Nos últimos anos de sua vida Bertran vendeu uma fazenda em que fazia experiências de construções com materiais locais e comprou a pedreira que serviu para a construção da barragem que forma o lago Paranoá, em Brasília.

Lá, construiu casa, biblioteca, auditório e reproduziu em paredões de pedra inscrições rupestres que encontrou em suas perambulações e que serviam para seus estudos, algumas datadas de 10 mil anos.Essa área virou museu.

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