Crise, saúde e capital: o anunciado day after

Há, de fato e inegavelmente, uma crise sistémica e civilizatória caminhando há tempos, que se projetou à maneira de crise sanitária e humanitária nos últimos meses diante da emergência ocasionada pelo Covid19.

Foto: Silvia Izquierdo/AP

Crise que no Brasil se transporta e se reflete continuamente em termos políticos, especialmente e de maneira localizada no âmbito do Executivo federal diante da incapacidade notória de coesão do presidente. Jair Bolsonaro faz opções que atendem a um reduto de orientação clara e fascista, as exigências de camuflar situações incontornáveis o faz cumular contraditores, ao passo que seu desprezo pela ciência e sua incompetência se tornam cada vez mais manifesta.  

Neste quadro e ao ritmo da quarentena escutamos com bastante frequência que o mundo não será mais o mesmo. Alguns mais otimistas alegam que atravessamos a hora mais escura e que a esperança consiste em que, precisamente por isso, o amanhecer será de luz e renovação. O day after parece ser o ponto número 1 das reflexões. Um clima internacional persuasivo começa a ser impor induzindo a opções econômicas e políticas supostamente inéditas. A seu lado, percebe-se o processo acelerado de aprofundamento das contradições intrasistêmicas, cuja amostra mais nítida é a visualização escancarada da desigualdade e a fome, fatores tristes e comuns não só na periferia, mas notadamente nas filas dos despossuídos em grandes centros como Nova York.   

E é precisamente neste demarcador de época que ficam expostos os projetos divergentes de sociedade. Entre indignado e surpreso assisto na televisão espanhola as opiniões de examinadores do momento. Trata-se de um debate sobre o futuro a pós pandemia. Um dos expoentes reconhece a crise, porém insiste em ocultar, consciente ou inconscientemente, suas origens e a tragédia a que leva o predomínio do capital. Defende o mercado regulado, ao mesmo tempo se refere a Inglaterra e menciona o Brasil, colocando como exemplo o funcionamento do Sistema Único de Saúde, que no seu entendimento, embora padeça de dificuldades, impede que, como aconteceu infelizmente na Espanha, o drama seja muito maior. Entretanto, nosso amigo não encontra a conexão entre mercado e destruição dos direitos sociais. Sonha, como Fourier e Owens, com a visão de um capitalismo clássico de “bons burgueses”, que a ótica de capitalismo imperial superou no começo do século XIX. Contudo, há sinais positivos, faz parte do grupo daquilo que meu professor de linha política na Colômbia, o gigante Álvaro Vásquez, chamava, já na década de 80, de “aliado tático” diante do neoliberalismo selvagem.         

O seu interlocutor tem um discurso enfadonho e schumpeteriano. Afirma que sairemos fortalecidos da crise porque as alternativas surgem a cada passo. Afirma que, na verdade é uma etapa criativa, semelhante a aquela que atravessaram os Estados Unidos entre o final da secessão e a Primeira Guerra Mundial quando os trens substituíram os cavalos e o aço ao ferro. Nada menciona sobre o fechamento das fábricas e o desemprego que se alastrou naquela época. Já no seguinte bloco a minha suspeita sobre o fundamento teórico se confirma quando Schumpeter reaparece no molde clássico ao falar de democracia: “ A democracia se fortalece nestes períodos porque a unidade das nações se constrói nas dificuldades”; “nesta hora precisamos de lideranças”; “não existem governos populares mas governos eleitos pelo povo”; “o povo não poderia governar em circunstâncias tão difíceis, tem que se proteger e as lideranças tomarem decisões”; “precisamos de mais empresários na política porque ao cidadão real não lhe interessa a política e se todos se interessaram não haveria governabilidade”.  

Termina o programa e começo a pensar nos resultados do debate. Lembro de David Harvey, que ao iniciar sua obra sobre as contradições do capitalismo nos lembra que as crises são determinantes para a reprodução do capital. É precisamente no interior delas, diz Harvey, que as instabilidades são confrontadas e reformuladas, criando uma versão renovada do mesmo sistema. Me pareceram atuais as palavras do geógrafo porque deste lado do pensamento crítico há quem diga que o capitalismo atravessa uma crise fatal sob a forma de uma pandemia. Na verdade, para alguns ingênuos o sistema entrou em colapso e inclusive vozes muito autorizadas fizeram eco em algum momento à esperança de uma espécie de capitalismo ético, exigindo e aguardando providências de lideranças que hoje, supostamente, demostrariam algo de humanismo para convocar juntos uma caminhada momentânea e na qual todos seriamos “irmãos no destino”. Como diz Harvey, há que intente modificar o mundo sem consultar à classe plutocrática que domina várias esferas da economia, incluindo a relação que esta tem com a saúde.

Depois lembro de uma reflexão de Atilio Borón, em artigo que comenta posicionamento de Zizek – a quem muitos começaram a conhecer pela propaganda que fez há alguns dias um ministro desatinado-  nos lembra de algo essencial: para o capitalismo cair é preciso uma força que faça o trabalho de fazê-lo cair. Acho que precisamente por isso temos que prestar atenção à forma como a ideologia dominante conceitualiza a “emergência” e como a pandemia transforma as concepções de mundo. É necessário estar atento às subjetividades, tentando compreender as mudanças drásticas na forma de pensar e de entender das pessoas sobre a sua própria situação. Esclarecer como funcionam as instituições e o poder público e as relações entre as várias vertentes do capital – financeiro, comercial e industrial – e sua procura de fórmulas que lhe garantissem as menores perdas possíveis, especialmente a utilização do Estado como ente de transferência de recursos para o sistema bancário e exigir dos trabalhadores uma cota inaceitável de sacrifício com a renúncia de contratos e salários, que por sinal no Brasil contou com a  declaração de constitucionalidade do Supremo Tribunal Federal.  

De maneira que, ainda que os discursos como os assistidos na TV sejam algo comuns, a realidade admite outras interpretações sobre o atual período e, por conseguinte, sobre o que queremos e não queremos no day after. Nesse sentido, sendo justos, haveria que dizer: 1º) que a pandemia desagasalhou ao capitalismo de seu palavreado e ostentação como exclusivo organizador da realidade ante a exigência de direito à vida e à saúde. Colocou sua incapacidade de manifesto. Não é possível aceitar como “natural” os cálculos da perda de vidas humanas, como os apresenta Trump, porque, simplesmente, isso é contrário a qualquer espírito minimamente civilizado: 2º) que os grandes desafios sociais requerem de um Estado em favor das pessoas e isso somente é possível com um governo de vocação popular. Não bastam lideranças, e muito menos as moralmente diminutas, como os exemplos na América Latina de um Duque ou Bolsonaro. 3º) que a solidariedade é atributo dos povos e não das forças hegemônicas de poder. Espanha e Itália suportaram, como afirmavam os expositores, sozinhas a pandemia durante mais de 45 dias. O descaso da UE contrasta com o exemplo de Cuba e outros Estados; 4º) que as classes dominantes carecem de uma concepção real de democracia. Seu oportunismo faz que utilizem o “estado de exceção” – recebe nomes diversos dependendo do país – para robustecer o autoritarismo, tentar reduzir as faculdades dos legislativos e promover uma legalidade à margem que consiga, como já advertimos, fortalecer fórmulas de acumulação e retirar garantias dos trabalhadores.

Uma questão não pode ser esquecida: que as pretensões geopolíticas neste período afloram com maior hostilidade. Já se conhece que Trump desloca tropas pelo Caribe ameaçando, no meio da angústia e a tristeza, com uma intervenção na Venezuela e realiza exercícios militares nas bases que EUA possuem na Colômbia.     

Talvez o mais complicado seja reconhecer que no debate assistido algo de razão há nisso de que o capital pode acumular sob a pandemia e se reprogramar. É o chamado “capitalismo do desastre” estudado por Naomi Klein, ainda que, com franqueza, o capitalismo seja sempre um grande desastre. No caso da saúde, misturada ao funcionamento geral do sistema, a concepção mercadológica desse direito colide de frente com a vida humana, com o direito a existir. É dizer: o conceito de saúde como direito humano se revelou, porque de fato é, como todo direito humano, profundamente anticapitalista.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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