“Desejo e Perigo”: Espionagem em tempos de ocupação

Em filme supostamente sobre espionagem, diretor taiwanês, Ang Lee, discute as difíceis escolhas que a urgência das tarefas impõe ao jovem grupo de resistência chinesa durante a ocupação nipônica.

Nos anos 30, durante a ocupação japonesa, um grupo de jovens militantes comunistas recebe a tarefa de eliminar o chefe de polícia de Xangai, acusado de colaboracionista pelo Partido Comunista Chinês. O modo como eles executam o plano é o centro da sofisticada narrativa do taiwanês Ang Lee, em “Desejo e Perigo”, que mescla mistério, luxúria, erotismo e suspense, sem tocar em questões político-ideológicas, comuns neste tipo de filme, em que a frieza, o compromisso, a lealdade e o idealismo contam, muitas vezes, mais que supostamente o heroísmo. Quando surgem, são através do bloqueio de ruas, de um ou outro grupo de soldados japoneses. Nenhuma referência às implicações do imperialismo nipônico, cujas teias não se restringiram à ocupação territorial; se estenderam ao cotidiano, à prostituição forçada de jovens chinesas e ao trabalho escravo. E que até hoje rendem polêmicas discussões entre os dois países, inclusive pedidos de desculpas do governo japonês.          
                   


 


 


Lee preferiu fazer um filme de detalhes, de composição de cena, de figurinos, de reconstituição de época e de uma apurada direção de atores. Há assim toda uma aparência que emerge aqui e ali, sem deixar de mostrar os lances subterrâneos da chefatura de polícia e das acaloradas reuniões da célula de estudantes universitários. Pertencentes a um grupo teatral de Hong Kong, eles se valem de suas experiências no jogo de cena para escolher aquela que irá cumprir a espinhosa tarefa de se infiltrar na rede policial chinesa, sob ordens do ocupante japonês. Sua preparação, cercada de expectativas, demonstra o quanto precisam aprender para alcançar seus objetivos. Nenhum deles jamais penetrara num ambiente onde as víboras disputam umas com as outras, qual é mais venenosa. Têm a seu favor o idealismo e o fervor revolucionário, demonstrado na canção que entoam pelas ruas, antes de pôr a tarefa em ação.


                 


 


Canção reforça o papel da juventude


 


 


                 


 


“Somos os frutos dos dias de hoje/os pilares da sociedade de amanhã/Hoje cantamos juntos/Amanhã salvando o povo numa vaga gigante/Uma vaga gigante que vai avançando/Colegas, caros estudantes, deixem que a vossa força suporte a ascensão e queda deste mundo/Uma vaga gigante/Uma vagas gigante”. Canção revolucionária que impulsiona a ação e engendra o clima necessário à montagem da trama, que opõe a fragilidade à astúcia. E combina com outras vertentes, a das ruas vigiadas pelos soldados japoneses, a do movimento na chefatura de polícia e a do jogo de cartas das mulheres da elite, dentre elas a Srª Lee (Joan Chen), mulher do chefe de polícia Chiu Wai (Tony Leung). Estas em rápidos diálogos deslindam as impressões, os detalhes políticos da ocupação japonesa e a oposição Hong Kong/Xangai. E nisto se constitui a estrutura de “Desejo e Perigo”, baseado num conto de Eileen Chang, transposto para o cinema pelos roteiristas Wang Hui Ling e James Schamus, este habitual colaborador de Ang Lee.
                 


 


Uma confirmação de que o cinema de Ang Lee se estrutura numa gama de detalhes para envolver o espectador em sua sedutora narrativa. Desde seu melhor filme, “Comer, Beber, Viver”, esta unidade se mostra presente. Mesmo quando põe seus personagens em tórridas cenas de sexo, existe toda uma estruturação que as integram à narrativa. Basta observar as sequências em que Chiu Wai, também chamado Sr. Lee, e a jovem comunista, Wong Chia Chi (Tang Wei), se encontram. Eles têm sempre uma variedade de móveis, cores, roupas, abajur, semi-encobertos pelas sombras. O sexo, aliás, tem sido explorado à exaustão em obras que tentam abordar a complexidade do jogo político entre as nações, principalmente por Hollywood, em clássicos como “Expresso de Xangai”, inspiração ao que parece deste “Desejo e Perigo”.


                  


 


Personagem do filme não é femme fatal
                  
                  


 


Mas, enquanto o diretor Josef von Sternberg usa frases de duplo sentido para mostrar o caráter de seus personagens, a exemplo de  Marlene Dietrich seduzindo Clive Book quando se encontram no trem: “Demorei muitos anos e muitos homens para me tornar Xangai LiLy”, Lee prefere explicitar luxúria e desejo na intrincada trama de seu filme. A carga erótica na obra de Sternberg fica sempre a cargo de atrizes cujos gestos, olhares, figurinos insinuam o que seu corpo pode fazer para a consecução de seus objetivos. O clima erótico se estabelece entre os pares, as duplas, as presas que precisam ser dominadas para que a política impere. Não é á toa que o filme noir também bebe na mesma fonte. Em ambos, a espiã ou a femme fatal se faz de presa para alcançar objetivos nem sempre muito claros, às vezes, até para o espectador.
                   


 


Lee consciente da dubiedade e armadilha das sex-symbols, transformadas nas telas em femme fatal dota sua personagem, a jovem militante encarregada de executar a parte mais emblemática e perigosa do plano, de recatada carga erótica. Ela não é sedutora, sensual, provocante; limita-se a olhares, gestos limitados. Enquanto a sedução cabe ao chefe de polícia, de poucas palavras, sempre a medir as reações da jovem em suas relações com sua mulher, feita pela sino-estadunidense Joan Chen, e a possibilidade de tê-la em alguns momentos em ambientes sempre luxuosos. Não se tem aqui apenas o clássico jogo de sedução entre a espiã e seu alvo. Mais o da fragilidade, representada pela jovem, e a astúcia, enfeixada pelo maduro Chiu Wai. Um tipo de nuance que serve as intenções do realizador, desinteressado em grandes cenas de intriga e lances de espionagem.


                     


 


Eliminar uma pessoa não é sempre fácil


                  


 


Numa narrativa com estas características contam muito, é bom repetir, os pequenos detalhes. Um gesto, um olhar, a maneira com um personagem reage ao outro. Mas também a forma como atingem seus objetivos. Dois momentos bem o demonstram em “Desejo e Perigo”. Num deles, o grupo de militantes tem sua prova de fogo e quase falha, ao ter dificuldade de eliminar um dos homens do chefe de polícia. Lee acostumado às cenas de grande violência, iguais as de “O Tigre e o Dragão”, recorre ao Hitchcock de “Cortina Rasgada”, para mostrar o quanto jovens militantes estavam despreparados para uma tarefa daquela dimensão. Numa das cruciais sequências deste filme, considerado menor na cinebiografia do mestre do suspense, o cientista estadunidense, Michael Armstrong (Paul Newman), atrapalha-se na hora de assassinar seu perseguidor. O homem se debate, resiste, não cede aos golpes que lhe são aplicados. Uma forma de Hitchcock dizer o quanto é difícil e penoso matar alguém, seja lá quem for. Os jovens também têm a mesma dificuldade, embora os objetivos e os contextos sejam diferentes.
                   


 


Enquanto o inglês o faz, dado a seu filme tom humanístico de crítica à violência, o taiwanês se refere à fragilidade da jovem militância. Eliminar uma pessoa exige uma ferocidade da qual estão pouco acostumados. Principalmente, eles acostumados às encenações teatrais defrontam-se com uma exigência para além da realidade, pois envolve pôr a termo alguém de sua convivência: o conflito entre pendor político-ideológico e sua consecução se estabelece e eles se veem diante do inevitável. Uma grande cena de aprendizado, por mais dura que seja; construída com raro senso de timing (tempo cênico) e interpretação, que se não bem encenada não transmite a insegurança de quem a executa. Notadamente quando se quer dizer mais do que mostra. E abre espaço para outra seqüência em que a ação se dá num cenário e se completa em outro. Esta dupla ação, uma em ocorrência, outra na imaginação do espectador, ilustra bem a sutileza, os pequenos detalhes, características de sofisticadas comédias de roubo – se dá quando Wong Chi vai à relojoaria entregar um envelope, espécie de MacGuffin (instrumento, truque, que apenas faz a ação avançar), chave, no entanto, para a compreensão de seu estado de espírito.


                    


 


Diretor usa situações de outros filmes


                    


 


A maneira como é tratada pelo relojoeiro, a escolha da pedra preciosa, a contenção da personagem que ali está não apenas para ser presenteada por seu sedutor, e a ação que se desenrola fora do quadro, criam grande suspense. Lee brinca com o espectador ao enchê-lo de referências. De repente, ele, o espectador, pode estar em meio à atmosfera de “Como Roubar um Milhão de Dólares”” ou de  “O Segredo das Jóias”, debatendo-se para que nada aconteça à jovem militante. Algo fatalmente vai acontecer, ele sabe, só espera o momento. E ele pode perguntar sobre o entorno, o que motivou realmente todo aquele trabalho dela, o risco de alguém do grupo ou todo ele cair nas mãos do melífluo chefe de polícia. Algumas seqüências dão o tom destas indagações: trata-se de liberar o país da ocupação japonesa e o PC Chinês se livre da classe dirigente que a permitiu. Questões sem dúvida complexas, dado que inúmeras forças se movem à espera de que ela aja segundo o plano e Chiu Wai não suspeite. E, por fim,  a questão política se imponha.
                 


 


Há sempre uma urgência em “Desejo e Perigo” de deslindar o próximo encontro entre a jovem militante e o chefe de polícia, para que o grupo alcance seus objetivos. Este, mesmo sob tensão, acredita na capacidade de sua companheira manter-se firme no rumo fixado e não seja atraída pelo inimigo para seu campo. É neste ponto que o filme se distancia de suas inspirações. A jovem militante não se presta ao jogo de sedução das tradicionais femme fatals, ela é por demais contida, introvertida, quase não revela suas emoções, o desejo nela é provocado pelo maduro oponente, espécie de perigo que mais atrai que distancia. Ela o explica ao chefe do Partido, WU, num desabafo que antecipa o que virá a seguir. Apenas Kuany (Wang Leehom) o percebe, mas não convence Wu de que algo poderá ruir. 


                 


 


Obra é sobre como construir experiência


                 


 


Lee usa a lentidão, o decantar da cena e das intenções nuançadas para cria o ambiente, o suspense que só acabará na cena crucial quando, enfim, tudo se desmancha. Não por um lance de sorte, o desfecho não poderia ser mais comum, desde o início percebe-se que não se está diante do que o filme propõe nas primeiras sequências. Nada ocorre de espetacular, os movimentos são em espaços delimitados, sem grandes choques, quando isto ocorre as filigranas, as emoções, as implicações afloram dimensionando os atos do grupo de jovens comunistas e do chefe de polícia. O entreguista Chiu Wai está a serviço de uma camada dirigente que pouco ou nunca se expõe; sua segurança é mantida por um homem que se dá ao luxo de dizer à Wong Chi que não se sente atraído por jóias, um desapego material que mostra a complexidade do personagem. Nele se enfeixam as contradições de quem age nas sombras e escorrega ao demonstra seu lado humano. O mal absoluto é frio e calculista.
                     


 


Assim, “Desejo e Perigo” é mais sobre o perigo de se construir a experiência num instante histórico crucial para a sobrevivência de um país ocupado usando jovens abnegados, lutando contra o inimigo bem estruturado, que a respeito do triunfo. O triunfo é a capacidade de se enfrentar o inimigo em seu campo e em seus termos. O chefe de polícia é um profissional acostumado ao assassinato, à tergiversação, frio e cruel, disposto a sobreviver em seus próprios termos – o horror que se apossa dele quando se vê descoberto e a desabalada correria que empreende para escapar confirma sua fragilidade. O animal ferido em seu reduto sabe que pode ser alcançado.


                      


 


Situações podem ser testadas no cotidiano
                     


 


Lee usa o versátil ator Tony Leung para transformá-lo num ser dotado de crueldade, sensualidade e capacidade de sedução. E tudo com uma frieza apavorante, muito mais do que os caricatos vilões de filmes de ação, pois é um ser humano comum. As cenas com a jovem militante não têm o suave envolvimento de dois amantes que se entrelaçam, buscando tornar o desejo um instante de prazer, entre eles há sempre urgência, ansiedade, tensão; num contato que atesta o quanto estão distantes um do outro, em suas intenções e objetivos. Enfim, a paixão jamais aflora, a relação é mais sexual que erótica.
                   


 


Com estas características, “Desejo e Perigo” se torna uma obra que usa os estereótipos para reafirmar a necessidade de se retomar a narrativa clássica. Principalmente ao usar a lentidão, o decantar da cena, com ação a dando-se através do que está no quadro, não apenas por meio de cortes, que apressam a narrativa sem contribuir para a elucidação da trama. Usa para isto diversos gêneros e se inspira nos clássicos de espionagem, de suspense e de comédias de roubos, sem lançar mão de cenas rocambolesca. Nada do que o espectador vê na tela não pode ser testado no cotidiano. Sua beleza está na encenação que se dá em cenários que a reforçam. Salvo por certa estilização que dá impressão de se estar num filme da Warner Bros, anos 30 e 40, prevalece a ideia de que Lee sabe trafegar entre diferentes gêneros de filmes, inclusive o faroeste, sem abrir mão de suas preocupações com a fragilidade do ser humano quando colocado em situações-limite.


                 


 


Ambiente em que se dá a luta é glamourizado


                 


 


Entretanto, ao usar um momento histórico de extrema importância para o povo chinês se enredou numa armadilha cara aos filmes que ousam discutir a resistência e a construção de uma revolução triunfante. Bertolucci já o havia feito em seu  filme “O Ùltimo Imperador”, ao contar a história de Pu Yi (John Lone), que, no período tratado por Lee, submeteu-se ao império nipônico e acabou imperador títere da Manchúria (1934/1945). E Lee, embora tente mostrar os militantes como seres humanos, sujeitos a fragilidades, escorrega ao não revelar a abnegação e a tenacidade dos mesmos. É como se justificasse a queda e a execução do grupo de militantes, glamourizando o ambiente em que se deu sua luta, e, por outro lado, reforçasse a astúcia e a crueldade do inimigo triunfando sobre eles. E também não demonstrasse que a construção da luta se dá em espiral, para usar a frase histórica de Marx, não em linha reta.
                 


 


A se considerar que a ficção é uma versão da realidade, e o fato histórico se presta à perenidade da arte, o desfecho de “Desejo e Perigo” pode ser tomado como uma etapa da liberação chinesa do jugo japonês. Mesmo que seu tema central não seja a luta da resistência chinesa contra a ocupação que marcou milhões de chineses, mas sim entre a fragilidade e a crueldade. De qualquer forma; o olhar trocado por Kuany com Wong Chi num instante crucial de suas vidas, atesta o quanto as fragilidades podem ser substituídas pela dúvida. O espectador pode interpretá-lo como seu estado de espírito o permitir, no instante em que com ele se defrontar. Afinal, as obras de arte entregam muitas vezes muito menos do que deveriam. Daí sua perenidade.


 


 


Desejo e Perigo (“Lust, Caution”). China/EUA. Drama. 2007. 158 minutos. Roteiro: Wang Hui Ling, James Schamus. Baseado no conto de Eileen Chang. Direção: Ang Lee. Elenco: Tony Leung, Tang Wei, Joan Chen, Wang Lee Hon.


(*) Urso de Ouro no Festival de Veneza, 2008.


 


 



 
Tem a ver


 


 


Muitos filmes merecem ser vistos pelo tema e pela abordagem que seus diretores, muitas vezes desconhecidos, lhes dão. A coluna, que às sextas-feiras, veicula análise de um filme em cartaz, fará breves comentários de um ou mais deles, para que o leitor possa assisti-los em reprises, mostra dos melhores do ano ou em DVD. É uma forma de não deixá-los à margem da discussão como os dois que comentamos abaixo, que mostram como seus diretores usaram a espionagem, sob ótica adversa à da obra analisada nesta semana, para entreter o público.



 


Expresso de Xangai (“Shanghai Express”)-  Drama. EUA. 1932. 84 minutos. P&B. Roteiro: Jules Furthman (“Uma Aventura na Martinica”).  Direção: Josef von Sternberg. Elenco: Marlene Dietrich, Clive Brook, Anna May Wong, Warner Oland.  Supremo modelo de filme de espionagem e mistério hollywoodiano, ajudou a consolidar o mito Marlene Dietrich (“O Anjo Azul”). Numa estação ferroviária em Pequim, rumo a Xangai, a enigmática Lily reencontra seu ex-amante e a partir daí se desenrola uma trama esquemática, com a China parecendo um imenso parque de miseráveis. Vale, sobretudo, pela capacidade de Sternberg criar atmosfera que reforça o papel de Dietrich como sex-simbol. Mas demonstra, também, a falsificação histórica, geográfica e de costumes que Hollywood continua sendo  capaz.


 


 


Cortina Rasgada (“Torn Curtain”)– Drama. EUA. 1966. 128 minutos. Roteiro: Brian Moore. Direção: Alfred Hitchcock. Elenco: Paul Newman, Julie Andrews, Lilá Kedrova (“Zorba, o Grego”).  Durante a Guerra Fria, cientista estadunidense viaja clandestinamente à Alemanha Oriental para encontrar-se com seu colega alemão, para dele tirar a fórmula de importante arma atômica. Os meandros desta tentativa incluem o par romântico de Armstrong, Julie Andrews, e uma série de situações nem sempre verossímeis. Dentre elas, a teatral esperteza do diretor em usar a dualidade narrativa para o cientista escapar, quando as autoridades alemãs estavam para pegá-lo. Trata-se da reciclagem da cena crucial de “O Homem Que Sabia Demais”, quando os pratos se chocam e Doris Day grita, denunciando o assassino. Aqui isto ocorre com Armstrong simplesmente gritando fogo. De qualquer forma, Hitchcock é engenhoso o suficiente para nos faz acreditar em suas manipulações.

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