“Dois Anjos”: Irã para principiantes

Com simplicidade, diretor iraniano Mamad Haghighat conta a história de um pai às voltas com a morte do filho e revela a face oculta do Irã moderno

Não é à toa que o cinema iraniano é, hoje, um dos melhores do mundo. Inventivo, com economia de meios, seus diretores conseguem forte empatia com o público com histórias simples, mas de complexo significado. Em “Dois Anjos”, de Mamad Haghighat, há confronto entre o velho, representado pelo pai, e o novo, representado pelo filho Ali. São o antigo, possuído pela religião, e o novo Irã que, sem abandonar suas raízes, quer buscar novas formas de manifestação cultural e de vida. Com nesgas de fatos, Haghighat coloca o público num dilema. O que fez o pai, que se penitencia numa mesquita, para acreditar que matou o filho menor, e o que este fez para merecer tal punição?



             
Esta é a história de “Dois Anjos”. A partir daí Haghighat apresenta o dilema do pai, num Irã diferente daquele mostrado pela mídia do Ocidente. No lugar de um país mergulhado nas mesquitas, com mulheres de chador, temos uma nação cheia de vida, ruas e estradas asfaltadas, prédios modernos e jovens enfiadas em jeans como em qualquer cidade européia, norte-americana e sul-americana. Nada de homens barbudos, de vestes seculares, apenas. Têm rostos e roupas comuns, iguais a de seus pares de outras nações. Isto nos é revelado ao longo da história, que mostra a convivência entre o velho e o novo, numa mescla por que passa todo país, num encontro entre o arcaico e o moderno, neste início de Terceiro Milênio.



             
O traço de classe é representado pelo negócio do pai Sohrab (Mehran Rajabi), um pequeno burguês dono de uma padaria. Nesta, ele produz o pão e o vende a seus fregueses. O filho de 15 anos, Ali (Siavash Lashkan), ao contrário do pai, quer outro tipo de vida: aprender música. O pai o quer seguidor de seus negócios. Um tipo de confronto comum na cinematografia desde o início do cinema, só que Haghighat não mergulha em sacrifícios, penitências, só expõe os fatos em flash-back, o suficiente para se acompanhar o filme. Os planos são simples, limpos, de poucos cenários, sem rebuscamento. Qualquer cidadão que for ao cinema irá acompanhar o desenrolar do confronto.


 


             
Filme mostra Irã sem clichês da mídia
            


O jovem Ali parte, com a ajuda da mãe (Fahimed Rahimnia), para Teerã, onde, com ajuda de um amigo da família começa a aprender a tocar o instrumento que o encanta. A descoberta da música, do instrumento, é mesma de outro Irã. Sua curiosidade o leva a descobrir que, além dele, as moças também aprender música. Têm o mesmo interesse que o seu. Haghighat aproveita para traçar um perfil da iraniana moderna: está em busca de seu próprio caminho, escapa aos clichês vendidos pela mídia ocidental. Suas roupas são idênticas às demais jovens de sua idade. É Azar (Golshifte Farahan) que irá lhe mostrar as múltiplas possibilidades da vida. E nasce, então, um forte sentimento entre ambos.



             
Enquanto Ali descobre a vida fora de seu espaço, o da padaria do pai, e de seu quarto, Haghighat usa a parábola do pastor de ovelha que usa seu instrumento para mostrar ao jovem novo caminho. É ele que ajudará Ali a resolver seu problema: a falta de instrumento com o qual pudesse participar das aulas no conservatório. Pode parecer ingênuo, mas Haghighat nos diz com isto que é dos humildes que se pode esperar ajuda. Uma espécie de aliança entre o pastor e o jovem, filho do pequeno burguês. Este nada sabe, acha que o filho irá se desviar do bom caminho: o de sua padaria para se transformar em alguém desviado dos bons propósitos. Lembra o filme irlandês “Bill Eliot”, de Stephen Daldry, em que o pai não quer que o filho entre para a academia de dança, entendendo que não seria apropriado para alguém do sexo masculino. O mesmo se dá em “Dois Anjos”, só que sob outra perspectiva.



            
Haghighat, ao contrário, de Daldry não quer opor o mundo operário ao mundo das artes, mas o velho Irã contra um novo Irã. O Irã do pai de Alí é muçulmano, prende-se à fé, tudo se resolve desta forma. O de Alí é voltado para o contato com as coisas, as pessoas, a partir da percepção de que existem outros caminhos e que, para chegar aonde quer, precisa de alguém. Este alguém é o pastor de ovelhas. É um jogo dialético, entre aquele que chega e o que já está, mas tem algo a dar, a transmitir. Entre eles está a mãe, que, por ser mulher, no Irã arcaico, também não é ouvida, mas faz valer sua voz, ao burlar a vigência do marido.


           
Rito de passagem lembra novo Irã


                
É com esta estrutura que Haghighat faz seu filme avançar. O garoto, aos poucos, aprende a tocar seu instrumento e apreender como funciona o novo mundo. E o espectador a ver um Irã diferente. Numa brilhante seqüência, que confirma esta visão, Azar lhe mostra fotografias de sua vida em Paris, onde estudou. O garoto ao vê-las se transforma, outras janelas se abrem, inclusive a da curiosidade pela Azar mulher. Sua ingenuidade se esvai e também sua pureza de intenções. Alí não é mais o mesmo. Azar o transformou. Essa possibilidade de mudança, de encontrar outra paisagem, porém, entra em confronto com as idéias de seu pai. O confronto entre ambos, cheio de ódio, desconfianças e conservadorismo, mostra o quanto o país ainda tem de superar seu conservadorismo, sem perder suas raízes milenares.



             
Haghighat nos faz retornar à mesquita onde o pai chora o que fez ao filho. Ele quer ser punido por algo cujo sentido lhe escapa. Acha que fez tudo certo, pelo bem do filho e este, mesmo assim, se desviou para outro caminho. Não há destempero em seus gestos, como se tratasse de uma tragédia, algo que o levasse ao desespero total. Nada de música grandiloqüente. O cinema de  Haghighat não comporta isto. Sua câmera não passeia em fusões seguidas, em closes, para emocionar o público, trazê-lo para os sentimentos do pai. Ele apenas o mostra. Não há empatia ou ódio entre o espectador e ele: só dúvida sobre o acerto de sua ação. O clima, a parábola, não permite nada além disto.



           
Quem socorre Alí é o pastor de ovelhas. Os dois se complementam. O que este quer é que Alí continue a cultuar o instrumento símbolo de seu país e o ajuda a fazê-lo. O pai, no entanto, quer forçar o garoto a segui-lo sem entender as mutações que o fazem ir de encontro à música, forma nova de sentir o novo Irã. Ali quer a liberdade para dar vazão a uma nova forma de construir seu futuro, o do pai lhe é insuficiente. Azar lhe mostra isto. Ela, junto com o pastor de ovelhas e sua mãe, o direcionam para tal. Haghighat ao fazê-los se integrarem, aponta para o surgimento de um novo Irã que, sem abandonar sua velha cultura, se forja em novas bases. Homens como o pai de Alí ficará, sem dúvida, para trás, com sua religião e sua opressão.



          
A maneira encontrada por Haghighat para fechar esta parábola entre o velho e o novo, é das mais criativas que o cinema já apresentou. Usa a belíssima música iraniana, da trilha de Mohammad Reza Darvishi, para tocar adiante a história e seus acordes ficarem na cabeça do espectador por várias horas, após ter deixado o cinema. É catártico, sublime, como se Alí conquistasse o céu a partir da música, e o novo Irã o infinito a partir da mudança. Alí não poderá ser mais o mesmo, tampouco o Irã após ter sentido o sopro da mutação que o faz avançar a partir de sua própria cultura. Um belo filme de uma cinematografia que, influenciada pelo neorealismo italiano, ampliou seus espaços com técnica impecável. O Irã deve mudar, sim, nos diz Haghighat, mas deve preservar sua cultura milenar. Caso contrário, não será mais a antiga Pérsia, sim um país ocidental no antigo Oriente.


 


“Dois Anjos” (Deux Fereshté). Irã/França, 2003. Duração: 80 minutos. Música: Mohammad Reza Darvishi. Fotografia: Amir Assadi. Produção/Roteiro/montagem/Direção: Mamad Haghighat. Elenco: Siavash Lashkan, Mehran Rajabi, Golshifte Farahan.

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