Engels analisa O Capital, de Marx (final)

Esta é a segunda e última parte do artigo que Friedrich Engels escreveu em 1868 para divulgar O Capital, de Karl Marx, publicado no ano anterior. A primeira parte foi publicada na minha coluna da semana passada.

II


Vimos no nosso artigo anterior que todo operário empregado pelo capitalista executa um duplo trabalho: durante uma parte do tempo que trabalha, repõe o salário que o capitalista lhe adianta, e esta parte do trabalho é o que Marx chama trabalho necessário. Porém, tem que continuar trabalhando e produzir a mais-valia para o capitalista, uma parte importante da qual representa o lucro. Esta parte de trabalho recebe o nome de mais-trabalho.
Suponhamos que o operário trabalha durante três dias da semana para repor seu salário e três dias para criar mais-valia para o capitalista. Em outras palavras, isto quer dizer que, se a jornada é de doze horas, trabalha seis horas por seu salário e outras seis para a produção de mais-valia. De uma semana só pode usar seis dias, sete no máximo, se incluir o domingo; mas a cada dia se pode arrancar do trabalhador seis, oito, dez, doze, quinze horas de trabalho, e ainda mais. O operário vende ao capitalista uma jornada de trabalho por um dia de salário. Porém, o que é uma jornada de trabalho? Oito horas, ou dezoito?
Ao capitalista interessa que a jornada de trabalho seja tão longa quanto possível. Quanto mais longa for, mais mais-valia renderá. O operário instintivamente percebe que cada hora a mais que trabalha, depois de repor o salário, é uma hora que se lhe é subtraída ilegitimamente, e sofre na própria pele as conseqüências do excesso de trabalho. O capitalista luta pelo seu lucro, o operário por sua saúde, por um par de horas de descanso ao dia, para poder fazer algo mais que trabalhar, comer e dormir, para poder ter também outros atividades humanas. Diga-se de passagem que não depende da boa vontade de cada capitalista em particular lutar ou não por seus interesses, pois a concorrência obriga até os mais filantrópicos a seguir as trilhas dos demais, fazendo os seus operários trabalharem o mesmo tempo que trabalham os dos outros.
A luta para conseguir que se fixe a jornada de trabalho existe desde que os operários livres apareceram no cenário da história até os dias atuais. Em diferentes indústrias vigem diferentes jornadas tradicionais de trabalho, porém, na prática, raramente elas são respeitadas. Só se pode dizer que existe verdadeira jornada normal de trabalho ali onde a lei fixa esta jornada e se encarrega de exigir sua aplicação. Até hoje, pode afirmar-se que isto só acontece nos distritos fabris da Inglaterra. Nas fábricas inglesas vige a jornada de dez horas (ou seja, dez horas e meia durante cinco dias e sete horas e meia aos sábados) para todas as mulheres e as crianças de treze a dezoito anos; e como os homens não podem trabalhar sem a cooperação de delas, de fato também eles desfrutam a jornada de dez horas. Os operários fabris da Inglaterra arrancaram esta lei após anos e anos de perseverança na mais tenaz e obstinada luta contra os fabricantes, mediante a liberdade de imprensa e o direito de reunião e associação e explorando também habilmente as dissensões no seio da própria classe governante. Esta lei se converteu na salvaguarda dos operários ingleses, foi se aplicando pouco a pouco em todos os grandes ramos industriais, e o ano passado foi estendida a quase todas as indústrias, pelo menos a todas aquelas em que trabalham mulheres e crianças. Acerca da história desta regulamentação legal da jornada de trabalho na Inglaterra, existem dados abundantes na obra que estamos comentando. Na próxima sessão plenária do Reichstag do Norte da Alemanha (4) se deliberará também acerca de uma legislação industrial e, portanto, será debatida a regulamentação do trabalho fabril. Temos a expectativa de que nenhum dos deputados eleitos pelos operários alemães intervirá na discussão desta lei sem antes familiarizar-se bem com o livro de Marx. Há muito o que se obter aqui. As divisões que existem no seio das classes dominantes são mais propícias para os operários do que jamais o foram na Inglaterra, porque o sufrágio universal obriga as classes dominantes a ganharem as simpatias dos operários. Nestas condições, quatro ou cinco representantes do proletariado, se souberem aproveitar a situação e, sobretudo, se souberem do que se trata, coisa que não sabem os burgueses, poderão constituir uma força. E para este propósito, o livro de Marx põe em suas mãos todos os dados necessários.
Passaremos por alto uma série de excelentes investigações, de caráter mais teórico, e nos deteremos tão só no capítulo final da obra, que trata da acumulação do capital. Neste capítulo é mostrado primeiro que o método capitalista de produção, isto é, o método de produção que pressupõe a existência de capitalistas, de um lado, e de operários assalariados, de outro, não só reproduz para o capitalista constantemente seu capital, como também reproduz, incessantemente, a pobreza do operário, velando, portanto, para que existam sempre, de um lado, capitalistas que concentram em suas mãos a propriedade de todos os meios de subsistência, matérias primas e instrumentos de produção, e, de outro lado, a grande massa de operários obrigados a vender a estes capitalistas sua força de trabalho por uma quantidade de meios de subsistência que, no melhor dos casos, só basta para sustentá-los em condições de trabalhar e de criar uma nova geração de proletários aptos para o trabalho. Porém o capital não se limita a reproduzir-se, mas aumenta e cresce incessantemente, com o que aumenta e cresce também seu poder sobre a classe dos operários despossuídos de toda propriedade. E, do mesmo modo que o capital se reproduz a si mesmo em proporções cada vez maiores, o moderno modo capitalista de produção reproduz igualmente, em proporções que vão sempre aumentando, em número crescente, sem cessar, a classe dos operários despossuídos. “A acumulação do capital reproduz a relação do capital em uma escala maior: a mais capitalistas ou a maiores capitalistas em um pólo, e no outro pólo mais operários assalariados… A acumulação do capital significa, portanto, o crescimento do proletariado” (pág. 600). Porém, como os progressos da maquinaria, o cultivo aperfeiçoado da terra etc., fazem que cada vez se necessitem menos operários para produzir a mesma quantidade de artigos, e como este aperfeiçoamento, isto é, esta criação de operários supérfluos, aumenta com maior rapidez que o próprio capital crescente, o que acontece com este número cada vez maior de operários supérfluos? Formam um exército industrial de reserva, ao qual nas épocas más ou medianas se paga menos do que vale seu trabalho, que trabalha só de vez em quando ou fica à mercê da caridade pública, porém que é indispensável para a classe capitalista nas épocas de grande atividade, como ocorre atualmente, como é palpável, na Inglaterra, e que em todo caso serve para vencer a resistência dos operários ocupados normalmente e para manter baixos seus salários. “Quanto maior é a riqueza social… tanto maior é a superexploração relativa, isto é, o exército industrial de reserva. E quanto maior é este exército de reserva, em relação ao exército operário ativo (o seja, com os operários ocupados normalmente), tanto maior é a massa de super-população consolidada (permanente), isto é, as camadas operárias cuja miséria está em razão inversa a seus tormentos de trabalho (5). Finalmente, quanto mais extenso é na classe operária o setor da pobreza e o exército industrial de reserva, tanto maior é também o pauperismo oficial. Tal é a lei absoluta, geral, da acumulação capitalista” (pág. 631).
Eis aqui, expostas com todo o rigor científico — os economistas oficiais evitam sequer tentar refutá-las — algumas das leis fundamentais do moderno sistema social capitalista. Porém, nada mais resta a dizer? Nem tanto. Com a mesma nitidez com que destaca os lados negativos da produção capitalista, Marx destaca que esta forma social era necessária para desenvolver as forças produtivas sociais até um nível que torne possível um desenvolvimento igual e digno do ser humano para todos os membros da sociedade. Todas as formas sociais anteriores eram demasiado pobres para isto. Só a produção capitalista cria as riquezas e as forças produtivas necessárias para isso, porém cria também, ao mesmo tempo, com as massas de operários oprimidos, uma classe social obrigada mais e mais a tomar em suas mãos estas riquezas e forças produtivas – para que sejam aproveitadas em beneficio de toda a sociedade e não, como hoje, no de uma classe monopolista.
(4) Parlamento do Norte do Império Alemão
(5) Na tradução autorizada do I tomo de O Capital para o francês Marx sublinhou esta tese.

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