“Eu me lembro”: Memórias de um garoto desobediente

Diretor baiano, Edgard Navarro, narra as transformações sociais no Brasil ao longo de três décadas, a partir da vida de um garoto classe média.

Combinar rito de passagem com memória tem sido quase uma fórmula de cinema. Assim foi com Fellini, em “Amacord”, talvez o mais famoso memorialístico das últimas décadas. Combina poesia, sexo, drama, frustração, paixão, típicas manifestações da infância, em sua passagem para a juventude e a fase adulta. Muitas vezes, como em “Esperança e Glória”, do inglês Alan Parker, são lembranças de tragédias que se abatem sobre uma família durante o bombardeio de Londres pela força aérea alemã, a Luftwaffe. Em “Eu me lembro”, do brasileiro Edgard Navarro, elas traçam um painel de três décadas de um Brasil que vai da perda da ingenuidade relativa, nos anos 50, ao desencanto da década de 70.Ingenuidade relativa, pois pintados como “os anos dourados” em que, livre da maldade do sexo, refletiria certa pureza do período da infância, mas que na verdade ocultava o puritanismo católico profundo da classe média, como revela Navarro em seu filme.



          


É esta suposta ingenuidade que é colocada à prova por Guiga (Lucas Valadares, adulto) desde os tenros anos, quando insistia em descobrir, a partir da própria mãe, as relevâncias do sexo. Uma fixação sexual determinada por forte repressão paterna e religiosa, predominante naquela época, mas também uma tentativa precoce de descobrir regiões que lhes eram vedadas, quando o que ele pretendia era conhecer territórios inóspitos. Outras descobertas menos insuspeitas sobrevinham em instantes em que deveria haver interação entre mãe e filho, e ele desandava a repetir palavrão após palavrão, o que terminava por lhe valer reprimendas do pai. Não só ele percorria estes caminhos, também o irmão partia para descobertas menos incestuosas, valendo-se de um voyerismo padrão naqueles anos: o de surpreender a vizinha no banho junto com um amigo.


 


         


Descobertas precoces e repressão religiosa


 


        


O rito de passagem de Guiga é ditado por esta insistência em descobertas sexuais precoces, depois naturais, muitas vezes incentivadas pelas pregações do padre-professor em suas aulas, por  tratar a masturbação como pecado. Justamente no estágio em que, para ele, essa prática era mais do que natural. Navarro pontua estas descobertas, com menos poesia e mais crueza. Chega ao explícito de maneira direta, rompendo a cadeira memorialística, porém recuperando “a história da educação sexual brasileira” através da iniciação permitida pelo “catecismo de Carlos Zéfiro”. Poucos hoje recordam de sua importância para várias gerações de jovens das décadas de 50 e 60, até as revistas pornôs lhe roubaram o espaço nos anos 70. Ele apenas o  recuperou nos anos 90, quando ganhou o status de arte, dada à qualidade de seus desenhos e de seus enredos. Um verdadeiro Henry Miller dos quadrinhos eróticos.



       


Estas são apenas algumas camadas desse painel ambicioso, que ganhou sete prêmios no Festival de Brasília de 2005. Outras tão ou mais importantes surgem ao longo do filme, pontuadas pela música que vai do samba às marchinhas de carnaval, passando pelo bolero, o rock, o maxixe, a bossa nova e a tropicália. É ela, a música em várias línguas, que provoca uma viagem paralela à sucessão de imagens na tela. Evocam sensações, momentos, pessoas queridas que se foram, outras que ainda vivem, mas que são apenas lembranças. Fica-se com a impressão de que Navarro desprende o espectador da tela para mergulhá-lo no passado à procura de emoções que retornam aos borbotões. Basta uma marchinha de carnaval dos anos 50, de um bolero, “Marcianita”, para que o filme fique em segundo plano. Ele, Navarro, talvez percebendo que isto deveria ocorrer chama-o de volta às imagens e à realidade da mulher nos anos 50.


 


           


Mulher da década de 50: falsa ingênua


 


         


Uma mulher diferente da atual, sobretudo falsa ingênua, ressalta Navarro através do diálogo entre duas clientes de uma costureira, sobre o casamento de uma amiga. Uma delas diz que pouco importava se o noivo fosse velho e feio, o que valia era seu emprego, seu status e o prazer que ele poderia lhe dar. Se a mulher naquela década ainda não chegara à revolução dos anos 60, já prenunciava em plenos “anos dourados” o que viria a seguir. A liberação sexual, depois decantada, existia velada já naqueles anos. Que o diga a escuridão, os postes e as árvores e o comportamento sorrateiro da juventude que a surpreendia. Se o comportamento sexual refletia a tentativa de liberação para escapar à pressão religiosa e paterna, aqueles eram anos de profundas transformações na estrutura social brasileira.



         


Navarro mostra-o em rápidas seqüências, sutilmente, as mudanças que ditaram a decadência das relações familiares naquela época. E o faz por meio de um móvel importante para elas: o rádio, que ocupava o centro da sala de estar. É ele que trás o “Repórter Esso”, o programa de rádio de Ary Barroso, o humorístico “Balança mas não cai”, os concertos musicais e as novelas. Sim, elas já estavam presentes no instante em que a televisão era apenas uma possibilidade de lazer familiar. Com a diferença de que o rádio permitia um olhar para além da janela, da sala e do quarto para a vida lá fora. Não exigia a atenção que a tv o faz hoje. É um mundo em que a tecnologia ainda engatinhava e as relações pessoais ditavam normas mais duradouras. Sua interferência não alcançara os ditames atuais.


 


         


Papel do negro:reflexo do racismo



          
         


Navarro, em princípio centra seu filme nestas transformações, sem avançar o olhar para além das relações familiares. Relações estas que incluem o papel do negro na Salvador daqueles anos. A da empregada doméstica e dos jovens sub-proletários. Ela, a empregada (Valderez Freitas Teixeira), principalmente, não pertence, de fato à família de Guiga. Esta relação sobrevém quando o garoto Guiga realiza concerto numa rádio e a empregada negra acompanha-o em seu quarto, longe do acontecimento. Ela está ali, mas pode ser descartada como de fato ocorre adiante. Este papel subalterno, fruto da época escravidão que perdura até hoje, sem que seja condenado. Não menos condenável é o papel da jovem negra que inicia sexualmente o irmão de Guiga e depois é posta para fora de casa.



          


Este fato, narrado rapidamente por Edgard Navarro, mereceria ser melhor explorado, dada às implicações que ele enseja. Ele segue em frente, com as seqüências pontuadas por diversos gêneros musicais, até que o aparelho de TV surge na sala de estar da classe média que podia adquiri-la nos anos 50. Ela galvaniza a atenção, impõe comportamentos ditados pela propaganda que prenunciava a sociedade consumista de hoje. As TVs Aratú (emissora baiana, onde se passa a ação do filme) e Tupi, esta hegemônica naquela época, geram outra relação com o público. E ditam também as mudanças na família de Guiga. Desmorona a relação de seu pai (Fernando Neves) com sua mãe, Aurora (Arly Arnaud). Num ríspido diálogo toda uma construção amorosa e familiar  vem abaixo e o menino ressente-se a partir dai do equilíbrio que lhe permitiu ver sua casa como seu ponto de segurança. Navarro sem grandes pontuações mostra, desta forma, as mudanças que se estabeleceram na sociedade brasileira na década de 60.


 


        


Personagem adere ao “desbunde”



       


É o momento em que a vida de Guiga perde o encanto e o vigor. Ele entra na vida adulta, novos impasses surgem, a insegurança se estabelece, reflexo dos anos em que toda uma estrutura ruiu. Seu principal pilar, a família, não é mais a mesma. Ele tem de se virar, a exemplo da irmã expulsa do convento, do tio que se foi numa noite e não mais voltou, do irmão que foi viver sua vida e do pai que conserva o comportamento autoritário que não mais cabe, diante do segredo que Guiga irá, por fim, atirar sobre ele. Guiga por sua vez irá aderir ao movimento hippie, ao “desbunde”, alheio ao momento histórico vivido pelo país, com a ditadura militar. Navarro mostra-o em mesas de bar, cercado por membros de sua tribo, sem esquecer que, para além deles, que regavam a vida à cerveja, cachaça, sexo e maconha, havia os jovens que se insurgiam contra a ditadura. Seu foco, no entanto, são aqueles que, sem ideologia alguma, achavam que o ócio, a curtição, era a saída para sua falta de perspectiva ou forma de contestar a sociedade de consumo, o capitalismo, os generais.



         


O “desbunde”, revela Navarro, termina por ser uma armadilha: a ausência de rumo leva à derrocada do ser humano. Ele não comunga com os valores burgueses, mas também não contribui para substitui-los. Guiga fica neste impasse tomado pelo hedonismo, o niilismo, o sexo grupal, a carência de horizontes. Muitos integrantes do movimento, no entanto, aderiram ao movimento verde, à vida grupal alternativa, à contestação à guerra do Vietnã, ao pacifismo; iniciativas que Guiga não teve. Só muito depois chegou à conclusão de que era um artista e deveria seguir este caminho. E o faz entre uma pitada outra de maconha. Nada edificante, porém condizente por extensão com certo segmento da classe média que não viu outros horizontes para além da estrutura capitalista.


 


         


Filme é desigual mas emociona


         


 


Entretanto se “Eu me lembro”, selecionado para os Festivais de Montreal e de Bogotá, evoca as décadas de formação cultural e de transformações familiares no Brasil, usando o rito de passagem de seu principal personagem, acaba sendo um filme desigual. A câmera de Navarro insiste em planos abertos, com todos personagens de interesse em cena, recurso este se usado na medida certa poderia dinamizar a narrativa e torná-la equilibrada. As seqüências não decantam a cena (esperar que a imagem se fixe, permitindo identificação dos personagens e da ação), o movimento se dá mais pelo corte do que pela dinâmica da cena, e no final, na terceira parte, quando a cena decanta, o filme torna-se cansativo.



       


“Eu me lembro” não é o “Amacord nacional” como foi dito, é apenas um filme que faz o espectador viajar em dados momentos históricos brasileiros. Sua vantagem é trabalhar seu rico material sem pudor ou respeito em demasia por uma época, como a década de 50,  tida por rósea, pudica e ingênua, quando na verdade nada disso era. A classe média, como se sabe, nunca foi santa.  Só desmistificar isto já é o suficiente para garantir uma ida ao cinema. Dá para rir, se emocionar e lembrar de um tempo em que o Brasil prenunciava tempos melhores do que os que deixaram os generais e o imperialismo yanque.


 



“Eu me lembro”. Drama, Brasil, 2006, 108 minutos. Roteiro/Direção: Edgard Navarro. Elenco: Lucas Valadares, Fernando Neves, Arly Arnaud, Valderez Freitas Teixeira.

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