“Fausto”: Inútil Demônio

Diretor russo Alexander Sokurov faz uma leitura do Fausto, de Goethe, e discute a inutilidade do Demônio numa sociedade que a tudo precificou.

Não se pode negar ao diretor russo Alexander Sokurov, em sua tetralogia, a sua capacidade de ousar e, assim, inovar esteticamente. Nos três filmes anteriores, “Moloch”, sobre Hitler (1999), “Taurus”, Lênin (2001), “Sol”, Hiroíto, (2005), tratou das ações destas figuras históricas. Em “Fausto” (2011), relê a clássica tragédia homônima de Goethe (Johann Wolfgang Von, 1749/1832), publicada em 1808. Nesta epopéia, ele retira da peça sua estrutura teatral, presa a cenários estanques e dá movimento às sequências da narrativa.

Se Goethe mescla religião, dinheiro e alquimia para elucidar a lenda ao redor do médico, mágico e alquimista Johannes Georg Faust (1480/1540), que vendeu sua alma ao diabo em troca da eternidade, Sokurov prefere discutir a banalização do poder de Mefistófeles, o Demônio. Este é o Comerciante (Anton Adasinskiy) que caminha com Fausto (Johannes Zeiler) pela caótica Frankfurt do século XVIII, para atraí-lo para suas artimanhas.

Desta forma, Sukorov desconstrói o que no Romantismo, ao qual integra o texto de Goethe, envolvia religião, burguesia nascente, povo e ciência. E introduz novos elementos, para a compreensão das mudanças operadas na estrutura capitalista desde então. Não se trata, portanto, de uma adaptação, mas de uma leitura da opção de Fausto pelo misticismo por não ver na ciência poder suficiente para levá-lo à eternidade, numa sociedade dominada pelo temor ao Demônio.

Embora Goethe escrevesse por sessenta anos sua peça, estruturou-a a luz das experiências do alquimista, médico, físico e astrólogo Paracelso (Phillipus Aureolus Thophrastus, 1493/1541). Este desfez a “certeza” da medicina que usava ervas, sementes e sangrias para curar os doentes. Introduziu a química, mostrando que os minerais também nutrem o ser humano. E permitiu a Goethe usar em sua peça ciência e religião, no embate Mefistófeles/Fausto, e a Sokurov vê-las como vertentes do nascente capitalismo.

Estecismo demais cansa

Sokurov, ao atualizar este tema em “Fausto”, o traz para a biociência, a genética, as células-tronco – a possibilidade de a ciência criar o ser humano em laboratório. É o homúnculo que se move sobre a bancada às vistas do cientista Wagner (Georg Friedrich) e da jovem Gretchen (Isolda Dychauk) em plena feira livre. Enquanto isto, Fausto e Mefistófeles andam entre inúmeros doentes que não encontram cura. Hoje cada doença tem valor mercadológico, pois até a ciência se mercantilizou, afastando os pobres dos hospitais. Este é o verdadeiro inferno, Dante não o construiria melhor.

Porém, Mefistófeles, em sua vã tentativa de influenciar Fausto, leva-o a outro ambiente: o das termas onde Gretchen e outras donzelas se banham. Ele se despe e neste ato se desvenda. Ela zomba de seu físico nada humano. Causa asco ao invés de desejo. E mostra a Fausto o quanto ele é vulnerável.

São nestas sequências que Sokurov banaliza a concepção de mal absoluto, configurada no Demônio/ Mefistófeles. Na peça, este diz que é o todo, mas só cuida de uma parte. E mesmo esta, à medida que perambula pela cidade com Fausto, se desfaz. Sua vítima começa a compreender que a sociedade capitalista banalizou seu poder. Isto foi engendrado pela própria estrutura burguesa. Ela não precisa mais dele, Mefistófeles, para praticar o mal absoluto. Assim, Fausto se ainda tem receio dele, já não o teme.

Esta impressão é confirmada na dantesca sequência do Inferno, a área vulcânica de onde fendas expelem gases e água quente, como se pus fossem. Mefistófeles orgulha-se do feito a Gretchen e aos que ali jazem frios, sem forças para se erguer. É o momento de seu ajuste de contas com Fausto. E este, ao contrário do que ocorre na peça, atinge o ponto fraco de Mefistófeles: ele está frágil demais para cobrar o prometido. A precificação de valores, ciência, religião, relações humanas e, inclusive, a longevidade, inutilizou-o.

No filme ele jaz sobre as pedras, enquanto Fausto se afasta, Acabou a culpa, o remorso, a busca da redenção. Tudo se tornou financeirizado. Não deixa de ser uma leitura materialista de um tema em si metafísico. Ou seja, uma visão aguçada da sociedade capitalista atual, cheia de vítimas – os proletários em geral – e de vitoriosos: os burgueses, financistas, investidores, que gestaram a crise atual e continuam a se enriquecer com ela. E, neste ponto, o desfecho que Sokurov dá a seu filme é, sem dúvida, otimista.

Mas, embora projete esta dimensão, “Fausto” não é uma obra fácil. O esteticismo demasiado embota uma bela leitura de um clássico. Sua narrativa linear permite ao espectador acompanhar a narrativa, suas diversas etapas, e identificar os personagens. Seus planos são bem articulados e ágeis. A questão é a estética, a prevalência de sombras e tons cinza-metálicos que parecem cortinas (resultado da coloração digital de Peter Doyle). Muitas vezes iluminados por velas dá a sensação dos tempos sombrios atuais. Porém, cansa. É para poucos. Os interessados em reflexão. Porém é um filme obrigatório.

“Fausto”. (“Faust”).
Drama. Rússia. 2011. 134 minutos.
Baseado na peça homônima de Goethe.
Música: Andréy Sigle.
Fotografia: Bruno Delbonnel.
Roteiro: Yuri Arabou.
Direção: Alexandre Sokurov.
Elenco: Johannes Zeiler, Anton Adasinskiy, Isolda Dychauk, Hanna Schygula.
(*) Leão de Ouro, 68º Festival de Veneza 2011.

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