Governabilidade não é uma abstração, é uma necessidade

A “governabilidade” parece ter sido conspurcada por um sistema político confuso, com excesso de partidos, um sistema eleitoral inconveniente e um tal “presidencialismo de coalizão”

Foto: Zeca Ribeiro/Câmara dos Deputados

As eleições desse ano, que não são apenas para a presidência da República, mas também para o esqueleto da federação: governadores, deputados estaduais, deputados federais e senadores. Trata-se, portanto, de uma eleição que dará um rosto político para esse país nos próximos quatro anos.

Nesse contexto há uma discussão sobre a questão da “governabilidade” que é, grosso modo, um conjunto de condições necessárias ao exercício do poder e isso significa as relações entre os poderes, o sistema partidário e o equilíbrio entre as forças políticas de oposição e situação. E a “governabilidade” parece ter sido conspurcada por um sistema político confuso, com excesso de partidos, um sistema eleitoral inconveniente e um tal “presidencialismo de coalizão”, que significa a necessidade permanente do chefe de Estado e governo criar laços, de todo tipo, com o parlamento, num sistema de troca de favores que parece ter surgido depois da Constituição de 1988.

Se olharmos com um certo cuidado, veremos que o erguimento do próprio sistema republicano nesse país, foi possibilitado por um conjunto de alianças que envolveram republicanos e monarquistas. Essa aliança, cuja base era a própria estrutura de classes vigente na época, formou um novo tipo de aliança, envolvendo as oligarquias estaduais, e criou um sistema hierárquico rígido, mas não inflexível. A chamada “política de governadores”, estabelecida depois de 1894, tinha no centro uma confederação de partidos de tipo único, o Partido Republicano, que exigia uma permanente negociação do presidente não apenas com o parlamento, mas também com as lideranças oligárquicas locais.

A Revolução de outubro de 1930 não desmontou esse sistema de poder, mas sim redesenhou as alianças do poder, incorporando os extratos das classes médias emergentes, o que fez com que a transição para “um novo regime” fosse feita aos sobressaltos, mas as alianças regionais foram fundamentais para a consolidação de Vargas no poder e o Golpe de 1937 interrompeu esse processo de transição, retomado em 1945.

Getúlio Vargas e seus aliados após o sucesso da Revolução de 1930 I Foto: Carlos Jansson

Nos dezenove anos seguintes o que se viu foi a consolidação de um sistema político ancorado em partidos que, à exceção do Partido Comunista do Brasil (PCB), eram lastreados pelas alianças locais, ou seja, o “presidencialismo de coalizão” já estava se consolidando e basta ver como a perda dessas alianças favoreceu a instabilidade política, a tal ponto que o presidente Getúlio Vargas cometeu suicídio, ciente de que sem apoio político, seria deposto por um conluio feito às claras pelos udenistas e militares.

As tensões entre 1961 e 1964 foram exponenciadas pela perda de controle das alianças de João Goulart e a base parlamentar, esfacelada, foi pulverizada pelos generais que, entretanto, só puderem concluir o Golpe com o apoio dos oligarcas locais e das forças políticas que estavam distribuídas no parlamento. Por isso teve a encenação feita no parlamento para institucionalizar a quartelada.

Depois da redemocratização, rapidamente as forças políticas se reagruparam e, se num primeiro momento o sistema político parecia se consolidar com uma base partidária concentrada no que foi deixado pela Ditadura (PMDB, PDS e PFL), rapidamente a “tradição” da organização política, com reflexos no sistema partidário, se fez sentir e já a partir de 1989, com eleição de Fernando Collor, ele mesmo oriundo do “velho sistema”, implodiu o status quo e daí por diante as forças políticas voltaram a se recompor em bases regionais.

Ora, o governo FHC baseou-se numa ampla aliança de interesses e de compromissos, que não passavam apenas pelo tripé de sustentação do governo (PSDB-PFL-PPS), mas por um conjunto de demandas que tinha representações em todo o parlamento, o que fez com que ele, inclusive, alterasse a Constituição e introduzisse a reeleição numa negociata explícita com os governadores.

Lula, em 2002, só conseguiu vencer as eleições com a formação de uma aliança bem moderada, mas quando assumiu teve que construir uma coalizão governamental, cheia de contradições, que possibilitou a sua reeleição e a eleição de Dilma, que se manteve no poder sempre no fio da navalha e quando esse status quo foi rompido, no final de 2014 e início de 2015, possibilitou a construção da arquitetura do golpe jurídico-parlamentar de 2016.

Foto: Nilson Bastian / Câmara dos Deputados

A governabilidade de Temer assentou-se em que? Numa coalizão que se espalhava pelo parlamento, revitalizando o “centrão”, que capturou Bolsonaro em pouco tempo e hoje o que se vê é um presidente refém desse grupo, que é heterogêneo, como sempre foi e as eleições de outubro já fazem movimentar as peças do xadrez política e, como sempre, as articulações nacionais se conformam com as forças políticas locais.

Imaginar que Lula, claramente trabalhando por um governo de “união nacional”, ou seja, um governo de reconstrução e não construção de uma “pauta de esquerda”, vem dando dor de cabeça aos que teimam em achar que as forças políticas, moldadas historicamente, podem se envolver na batalha eleitoral com base em “princípios morais da esquerda”. É óbvio que Lula, cujo nome tem forte peso dentro da estrutura política do PT, está articulando a recomposição dessas alianças, nacionais e locais, para desgosto dos teimosos.

Portanto é necessário que se compreenda, pelo menos no campo progressista, que a montagem de alianças eleitorais que tenha a pretensão de vencer as eleições e governar, não se movimenta pelos desejos e anseios dos grupos mais a esquerda e sim pela realidade que a cerca, que impõe a tática da construção de uma maioria parlamentar e basta olhar o passado recente para defender a tese da amplitude das frentes eleitorais.

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