Islã, a última trincheira?
Não há dúvida que existe hoje no mundo um imenso preconceito contra os seguidores do islamismo. E não é só pelo fato que muitos muçulmanos têm participado de ataques terroristas em várias partes do planeta. Não é por isso. Cristão e judeus ortodoxos també
Publicado 27/12/2007 15:27
Religião e política, como conciliar as coisas?
Pessoalmente, nossos leitores sabem que não compartilho, nem participo de nenhuma religião. Como sociólogo estudei sistematicamente várias deles, fiz pesquisas, li seu livros sagrados e respeito todas elas. Aliás, todos os nossos pais fundadores da sociologia estudaram a fundo o fenômeno religioso. Hoje mesmo no mundo há um crescimento do movimento ateísta, com a qual me solidarizo, mas não faço de minha vida uma militância nesse sentido. A religião pode ter e vai ter um papel importante neste momento histórico que vivemos, especialmente o Islã.
Todos sabem que o nascimento do cristianismo se deu por adeptos do judaísmo que davam combate à dominação imperialista romana na Galiléia. Havia, assim, uma clara opção política no fenômeno religioso, ainda que todo cercado dos cuidados de praxe que exige a ritualística das religiões instituídas. Hoje mesmo dentro da Igreja Católica temos uma pastoral que se chama “Fé e Política”. Não há como dissociar o fenômeno religioso da vida política. Os que fazem isso, acabam servindo às elites dominantes no poder, ao pregar abertamente a alienação de seus seguidores.
Mesmo o judaísmo, milenarmente anterior ao cristianismo, não tem um componente político em seus fundamentos? Quando o deus dos judeus propõe um pacto com o líder dos antigos hebreus à época, Abrão, e a ele propôs dar-lhes terras, não era um pacto político? Abrão não imigrou, vagando de Ur na Caldéia, até chegar à Palestina, já amplamente habitada pelos palestinos? Não podemos dizer que havia um projeto político nacional e patriótico nesse sentido a esse líder de um povo? A mesma coisa quando Herzl no congresso da Basiléia em 1897 defende um lar nacional judaico na Palestina, a volta maciça dos judeus de todo o mundo para essa terra, ele não estava usando a força da religião para implementar um projeto político nacional e patriótico?
Por fim, a religião islâmica. Esta é considerada a mais recente de todas essas mencionadas. Fala-se que o islamismo seria a última das três religiões reveladas diretamente por Deus aos seres humanos, alguns teólogos mais progressistas que aceitam o Islã, ainda que não sejam muçulmanos, mencionam que o Islã fecharia o ciclo profético das religiões reveladas, o ciclo mosaico (desde Moisés). Nesse sentido, talvez essa seja a religião com aspectos políticos mais explícitos. Ela surge por um líder tribal e árabe. Ele unifica o seu povo, constrói o que já foi um dos maiores impérios d aterras, prestou os maiores serviços para a história da humanidade e para o desenvolvimento científico e social de milhões de pessoas. Seu nome era Mohamed (conhecido no Ocidente por Maomé). Divulga a língua e a cultura árabe pelos cinco continentes (1).
É certo que Maomé cumpriu o seu papel como líder religioso, recitou versos que teriam sido ditados a ele diretamente pelo Anjo Gabriel, emissário de Deus. No entanto, o seu papel como líder de um povo e como chefe de um império foi fundamental. Tanto para a unificação de todas as tribos árabes, dando a esse povo uma identidade nacional, conferindo-lhes um projeto de nação, trazendo esperança, combatendo injustiças, libertando escravos, concedendo direitos negados às mulheres à época e tantas outras vantagens e benefícios. São inigualáveis os benefícios políticos, sociais e mesmo econômicos do Islã. Há autores que afirmam muitas vezes o caráter mesmo socialista e socializante dessa religião, com a distribuição de parte da renda e da riqueza de seus seguidores entre os mais necessitados.
O Islã político hoje
Os noticiários estão repletos de notícias sobre o Islã. Na maior parte delas, todas de caráter negativo. São depreciativas. Há má vontade e preconceito visível em todos os meios de comunicação contra árabes e contra muçulmanos. Isso está provado por parte de pesquisadores e estudiosos de mídia e do jornalismo sério e independente.
No entanto, a mídia mascarada esconde os objetivos dos muçulmanos e não muçulmanos que estão em luta hoje no mundo. Trava-se na verdade um grande e verdadeiro combate, que é contra o imperialismo norte-americano, cujo chefe maior hoje se chama George Walker Bush. As forças e tropas estadunidenses ocupam militarmente o Afeganistão e o Iraque. Mas tem presença no Kuait, Arábia Saudita e suas nove frotas navais se espalham em todos os oceanos e mares do mundo. Sabemos que qualquer ponto da terra dista, no máximo, uma hora e meia de vôo de um avião militar de ataque que parte de um dos nove porta-aviões que capitaneiam essas frotas navais com centenas de milhares de soldados prontos para desembarque. Os 192 países membros da ONU gastam por ano 1,2 trilhão em armas e salários de suas tropas. Metade disso, sozinho, gastam os Estados Unidos. Uma verdadeira máquina de guerra. Com que objetivo? Por certo dominar o mundo, impor a sua ideologia e modo de vida e garantir mercado para as suas empresas transnacionais.
Esse projeto de dominação (quase) completa do planeta esbarra num ponto: a disposição de grupos políticos e religiosos em várias partes do mundo de darem feroz combate, com todas as suas forças a essa dominação. Ai entram os partidos políticos de esquerda, especialmente os comunistas e socialistas, mas também os nacionalistas e patrióticos, revolucionários. Aqui entram as correntes religiosas. Deve-se articular, como vem sendo feito, com movimentos e sindicatos, partidos e igrejas, uma ampla aliança para a construção de um mundo novo.
É exatamente nesse cenário que o Islã ressurge como uma potência política e militar. Alguns estudiosos acabam por colocar no Islã a marca de uma religião guerreira. Isso é parcialmente verdadeiro. O Islã defende a paz, mas uma paz justa, com igualdade e fraternidade, sem a dominação de um império, como o americano é hoje. Mas mais do que isso: o Islã defende a sua forma e o seu jeito de existir, de governar países, aos quais, os ocidentais devem aprender a respeitar. A forma dita democrática que estamos acostumados no Ocidente, pode não ser a melhor nem a forma escolhida pelos povos em cuja maioria de suas nações vigore o islamismo. Devemos ser relativistas nesse sentido, encarar diferenças com naturalidade e respeito e saber conviver com elas.
Assim, os grupos armados muçulmanos de todos os tipos e natureza, jogam um papel preponderante, sejam elas quais forem os seus métodos e formas de atuar e combater. Pessoalmente, não apoio ações armadas que fim tire vidas de civis e pessoas inocentes, não diretamente envolvidas nos conflitos. Mas, todas as outras formas de combate são completamente válidas, seja pela via parlamentar, seja pela via revolucionária armada. Assim, hoje se destacam, no cenário do Oriente Médio, os grupos guerrilheiros islâmicos Hamas na Palestina e o Hezbolláh no Líbano (o Fatah na Palestina joga grande papel, mas ele é laico, sem vínculo religioso, ainda que a esmagadora maioria de seus membros seja muçulmana).
Em visita que Bush fez à Índia há cerca de dois anos, presenciamos imensas manifestações, que reuniram milhões de pessoas nas ruas, em repúdio à presença do ditador americano em solo pátrio. Uma verdadeira aliança política entre comunistas, socialistas e muçulmanos. Estes lideraram os protestos. De uma sabedoria imensa. Não podem disputar poder e espaços, quando um inimigo maior e muito mais poderoso encontra-se no caminho.
No caso recente do Líbano, em junho e julho do ano passado, uma frente política ampla foi formada, sob a liderança do Hezbolláh, grupo guerrilheiro xiita, para dar combate às investidas militares das Forças de Defesa de Israel – FDI, que atacaram o sul do Líbano, sob o pretexto de libertarem dois soldados israelenses seqüestrados em operação de guerrilha na fronteira com Israel. Israel foi derrotado fragorosamente. Matou mais de mil libaneses e deslocou centenas de milhares de suas casas, mas perdeu a guerra. Nem libertou nenhum soldado, nem muito menos desmontou o Hezbolláh como anunciou na vésperas do ataque o primeiro Ministro Ehud Olmert.
Mas, para que essa resistência fosse possível, esse combate ao mais forte exército de todo o oriente Médio, foi precisamos uma visão ampla da correlação de forças, entender mesmo quem são nossos inimigos principais e a eles darmos combate. No caso inclusive do exemplo que menciono, os grupos da resistência fazem oposição ao governo do Líbano, mas este ficou de lado, pois o inimigo maior era, naquele momento, um outro e precisava ser combatido. O caráter da frente é mesmo bem amplo. Dela participam o Hezbolláh, como uma espécie de cabeça, de líder da frente. São quase todos muçulmanos xiitas que segue a orientação do Cheque Hassan Nasralláh.
Depois disso, vem o grupo chamado Amal, que em árabe quer dizer “Esperança” e também é integrado por xiitas. Esse grupo não tem a força e o peso do Hezbolláh, mas na guerra civil libanesa entre 1975-1990 jogou um papel importante. Depois vem o grupo, denominado Corrente Patriótica Libanesa – CPL, liderada pelo general cristão Michel Aoun, deputado federal. Aoun, que era de oposição à permanência das tropas sírias em território libanês, depois de sua saída, acabou fazendo uma aliança com o Hezbolláh, que resultou em uma quase maioria no parlamento nacional.
Por fim, essa aliança, que de santa não tem nada, dela participa o Partido Comunista Libanês, o PCL. Um dos partidos mais antigo de todo o Líbano e praticamente fundador da resistência nacional desde a década de 1960, o PCL, dirigido pelo camarada Khaled Hadade, secretário-geral do Partido. Suas posições, extremamente lúcidas, podem ser lida na sua análise (em francês), em cujo endereço publicamos a seguir. Ai nessa entrevista que ele menciona o que mudou no Hezbolláh, a ponto de que eles entendessem o quanto amplo deve ser a frente. A questão central é exatamente não defender um estado islâmico no Líbano (http://www.lcparty.org/070925-2.htm).
Assim, alguns podem achar um exagero da nossa parte a afirmação, ainda que interrogada, dado ao nosso título. Mas, pessoalmente não tenho dúvida. O Islã cumpre hoje um destacado papel de enfrentamento e combate ao imperialismo norte-americano e mesmo ao neoliberalismo. No Oriente Médio, enfrenta tenazmente os Estados Unidos e Israel, ainda que hajam nuances na aplicação dessa política que muda de país para país. No geral, olhando de conjunto, estamos seguro que devemos trabalhar com os muçulmanos de todos os países e que esse movimento pode ser uma espécie de “última trincheira” de combate ao império. Assim, comunistas, patrióticas, socialistas, muçulmanos e cristãos, unam-se para o bem da humanidade.
Nota
(1) Há muitas biografias do profeta nas livrarias, mas a melhor que recomenda é de Karen Armstrong, da Editora Companhia das Letras, cujo título é “Maomé, uma biografia do profeta”, 320 páginas, R$51,50.