Lincoln: Distorção histórica

Steven Spielberg volta ao tema da escravatura nos EUA, em filme que deixa o movimento afrodescendente antiescravatura de fora

 Não se deve negar a Steven Spielberg a capacidade de fazer o espectador deslumbrar-se com o que vê na tela. Faz o super-espetáculo se tornar, de fato, superlativo. Tudo em “Lincoln” é grandioso – da enorme figura de Abraham Lincoln (Daniel Day-Lewis), os imensos campos de batalha, as multidões nas ruas, aos extensos espaços da Casa Branca por onde ele se desloca. Tudo para dotar o personagem título da aura de líder e herói incontestável da libertação dos escravos estadunidense. Mas é então que começam os problemas deste incorreto drama-histórico.

Spielberg baseou-se na obra de Doris Kearns Goodwin, “Grupo de Rivais – O Gênio Político de Abraham Lincoln” (em tradução livre) e no roteiro do dramaturgo Tony Kushner, John Logan e Paul Webb para estruturar sua narrativa sobre as táticas e articulações do presidente republicano para abolir a escravatura e pôr fim à Guerra Civil nos EUA (1861/1865), que matou 970 mil soldados. Ele é o centro irradiador desta epopéia, cujo objetivo é glorificá-lo, negligenciando o importante e decisivo papel da Sociedade Antiescravista Norte-americana.

Esta organização dirigida pelo movimento afrodescendente, tendo como principais lideranças o escravo fugido Frederick Douglass e Isabella, conhecida como Sojourner Truth (Verdade Passageira), deu continuidade à luta iniciada durante a Guerra da Independência, no século XVIII. Em 1830 já existiam 50 grupos de afroabolicionistas. “Os negros estiveram em ação em todos os cenários de operação durante a Guerra Civil” (1). Neles ecoou o protesto de George Moses Horton, no poema Hope of Liberty (“Esperança de Liberdade”), que, desde 1829, se espalhara pelo País: “Mandem a Escravidão esconder sua face desvairada, E o Barbarismo fugir; Desprezo ver a triste ignomínia/Na qual estou escravizado” (2).

Spielberg simplifica a obra de Kearns

Este movimento, cujos jornais difundiam suas idéias pelo Norte e Sul, foi, com o apoio dos abolicionistas brancos, o esteio que sustentou nas ruas, nas fazendas e nas fábricas as articulações políticas de Lincoln em Washington. Não foi mero espectador da luta pela abolição da escravatura nos EUA, onde à época existiam dois milhões de cativos. Spielberg reduziu a obra de mais de 900 páginas de Kearns Goodwin ao embate Lincoln com os republicanos e democratas escravocratas para dar densidade dramática ao filme. O que pretende é mostrar a sagacidade, a matreirice e o gênio tático-articulador do republicano Lincoln (1809/1864), mesmo que o aliciamento dos parlamentares para aprovar a 13ª Emenda fosse pouco ético.

Numa eficiente síntese, Spielberg o faz dizer que pretendia asfixiar as tropas sulistas fazendo aprovar no Congresso a abolição da escravatura e, então, exigir a rendição delas. E ao invés de mostrá-lo tenso, ansioso, Spielberg flagra os parlamentares se digladiando, enquanto ele está calmo, brincando com o filho menor ou tratando de assuntos conjugais com a primeira dama Mary (Sally Field). Parece que nada mais ocorria no País, salvo a guerra incruenta no Sul e suas articulações na Casa Branca. Na verdade, havia uma disputa entre a burguesia industrialista do Norte e os latifundiários do Sul.

Em “Da Escravidão À Liberdade – A História do Negro Americano” (3), os professores John Hope Franklin e Alfred A. Moss, Jr. explicitam esta disputa: “Pouco depois da guerra de 1812, o seccionalismo ficou evidente quando o Norte se voltou para a manufatura e o Sul, ainda ligado a uma civilização agrícola, veio a compreender claramente que os interesses das duas secções se tornavam antagônicos”. Era uma questão que interessava aos afrodescendentes, pois a vitória do Norte estava atrelada à sua libertação.

Racismo volta com Tea Party

Spielberg já havia se incursionado pelo tema da escravidão em dois filmes: “A Cor Púrpura”, baseado no livro de Alice Walker, sobre as relações entre afros, e em “Amistad” que também aborda a abolição. Embora no primeiro os afros sejam protagonistas, no segundo eles são coadjuvantes. Agora isto se repete. Só ganham alguma relevância na curta sequência em que o soldado e o cabo afros dialogam com Lincoln sobre a participação deles na guerra contra os 11 estados confederados. Mesmo assim quem domina a cena é o presidente não eles. Os demais afros são meros figurantes.

Tanto o “Lincoln”, de Spielberg, quanto o “Django Livre”, de Quentin Tarantino, são uma tentativa de discutir a persistência do racismo nos EUA, em meio à pressão da direita republicana e sua facção raivosa Tea Party contra o presidente afro Barack Obama. Este, mesmo mantendo as políticas imperialistas, com limitadas reformas sociais, não é aceito por eles. Mas Spielberg, ao contrário de Tarantino, que explode a casa-grande, não quis cutucá-los, preferiu beatificar Lincoln.

(1) “Da Escravidão À Liberdade – A História do Negro Americano”, John Hope Franklin/ Alfred A. Moss, Jr, Nórdica, 1989, pág.217;

(2) Idem, idem, pág. 183;

(3) Idem, idem, pág. 176.

“Lincoln”.
Drama-histórico.
EUA/Índia. 2012. 153 minutos.
Música: John Willians.
Fotografia: Janusz Kaminski.
Roteiro: Tony Kushner, John Logan, Paul Webb, baseado na obra de Doris Kearns Goodwin, “Grupo de Rivais – O Gênio Político de Abraham Lincoln”.
Direção: Steven Spielberg.
Elenco: Daniel Day-Lewis, Sally Field, Tommy Lee Jones, David Strathairn.

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