“Longe Dela”: Lições de vida

Filme de estréia da atriz canadense Sarah Poley consegue equilibrar narrativa sobre mal de Alzheimer e relações amorosas na terceira idade.

A gélida e desolada paisagem do interior de Ontário, Canadá, traduz o estado de espírito de Fiona (Julie Christie), nos estágios iniciais do mal de Alzheimer que a acomete em “Longe Dela”, obra de estréia da atriz canadense Sarah Poley. Inexistem animais circulando pela região gelada e as árvores não balançam ao vento. Apenas Fiona se movimenta sob esquis, como se tentasse pôr um pouco de vida naquele ermo que não é senão o que ela própria sente na plenitude da terceira idade. O que se vê a partir daí é uma tentativa de adaptar-se ao inexorável: o avanço da doença, a perda da memória e suas lembranças se transformarem em meros lapsos. Sarah Poley consegue nos passar estas etapas não a partir de sua queda; seu mergulho na paisagem inóspita da memória se dá através das reações de seu companheiro Grant (Gordon Pinset), que sofre mais que ela, a princípio, e depois vai se adaptando ao irremediável.
           


 


Toda a ação transcorre de seu ponto de vista; de quem observa o descer suave, mas constante de sua companheira por mais de 40 anos. Ele, a princípio calmo, controlado, deixa transparecer seu sofrimento quando dela se afasta; não está preparado para aquele crepúsculo que a acometeu num estágio da existência em que gozavam a vida a dois num chalé em meio ao bosque. Mas, à medida que ela dele se distancia, tenta controlar suas reações, tentando não ver o quanto de agonia há numa vida que se esvai devido à doença. Uma doença degenerativa inclemente, que a faz ser tomada pela prostração, e a lucidez quando regressa é por momentos, indicando que a memória pode esvair rapidamente. E quando isto acontece, Grant não mais se surpreende. Procura desfrutar aqueles instantes, como se durassem para sempre.


            


 


Diretora não deixa filme se tornar lacrimoso


            


 


Sarah Poley mostra estes estágios sem deixar que seu filme se torne uma daquelas chorosas obras sobre doença. “Longe Dela'” é sobre a separação, os percalços da velhice e, por que não, a respeito das relações amorosas num instante em que tudo parece desvanecer. Às vezes, Grant oscila entre o desânimo e a frustração, pois Fiona não mais o reconhece. Trata-o como se fosse uma miragem, algo que volta por instantes e depois desaparece. Algo lhe diz que em algum momento suas vidas se encontraram, trilharam caminhos juntos, só que agora Fiona se encontra em outro espaço, vivendo uma experiência com outro homem, Aubrey (Michael Murphy), sem relembrar quem seja ele. E ele, Grant, tem de suportar o que lhe foi explicado como uma tendência dos acometidos pelo Alzheimer. Eles desenvolvem sentimentos afetuosos pelo outro, como se para protegê-lo do mundo exterior, quando, na verdade, o fazem para dar segurança a si próprios.
               


 


Desta forma um protege o outro. Há uma espécie de relação entre eles, sem avançar para um apego amoroso. Grant se enciúma, até ver-se diante de um dilema: aceitar aquela relação como algo inerente à doença, deixá-la transcorrer ou enfrentá-la, afastando o rival da companheira. Sarah Poley, num vai-e-vem de montagem paralela, traz Marian (Olímpia Dukakis), mulher de Aubrey, para a narrativa. Marian, ao contrário dele, acostumou-se à situação; sente apenas saudade, vontade de ter o companheiro de novo em casa. Ela faz contraponto às reações de Grant; vivaz, entende o que ele sente e ajuda-o, sem com isto ocupar espaço na vida dele. São duas pessoas, vivenciando o mesmo drama, tentando afastar a solidão. E neste vivenciar terminam interagindo, sem compromisso algum. É como se Alice Munro, de cujo conto “O Urso Vem do Alto da Montanha”, Sara Poley tirou seu filme, dissesse: nenhum ocaso há na vida, apenas interregnos.


                 


 


Ameaça real a Grant vem da doença implacável


                 


 


Em nível diverso, a diretora, em seu filme de estréia, põe outro personagem, a enfermeira-chefe Betty (Grace Lynn Kung), como consciência de Grant. O faz compreender o que atinge Fiona e como reagir àquela desolado inverno. Principalmente quando ele sente ciúme de Fiona, por ela estar sempre com Audrey, protegendo-o. Nada do que ele, Grant, vê representa perigo para sua convivência com ela; ameaça real vem da doença implacável. Alzheimer nos diz a Larousse:  é “(…) demência pré-senil que se manifesta por volta dos cinqüenta anos e se caracteriza por uma deterioração intelectual profunda e maciça, associada uma desorientação temporal e espacial (…)”1. A relação de Fiona com Audrey é tão só a busca de amparo mútuo. Ela não está mais no controle de sua mobilidade psíquica, não reage ao entorno e tampouco reativa ações do inconsciente.
                 


 


“O envelhecimento progressivo das populações ocidentais tornou mais freqüente essa temível afecção, para a qual não existe prevenção possível. Só com um tratamento médico-psicológico intensivo do paciente, que visa mantê-lo o maior tempo possível em seu ambiente normal de vida (para evitar um desfalecimento psíquico), a ajuda da família, a organização de uma assistência médico-social bastante diversificada, é possível retardar a evolução da doença” (2). Intervenções desta natureza pontuam a narrativa, mais para situar Fiona e sua interação com os demais pacientes, acompanhados à distância por um Grant deslocado. Enquanto ela ao vê-lo o deixa aparvalhado; está ali e não está. Grant o sente. Justo ele que acompanhou as primeiras manifestações do Alzheimer, num gesto inusitado, quando ela guardou a panela na geladeira e ele a repôs no armário.


                   


 


Imagens de Fiona jovem não prenunciam futuro


                   


 


Sarah Poley acompanha de longe estes momentos da doença, como se não quisesse nos impor seu evoluir silencioso. Noutra cena, quando os sintomas se transformam em manifestações reais, ela o repete com os nomes dos utensílios escritos em cartolina; pregados na gaveta do armário. Grant então percebe algo anormal. Algo dele se parte e se distancia. Não ficamos às sós com Fiona; o que vemos dela é por meio Grant. Nisto se constitui uma das virtudes de “Longe Dela”. Percebemos que aquilo pode nos acontecer e nada poderá ser feito para refrear sua contínua evolução, salvo o retardamento, que significa tão só isto mesmo. Também Marian sente o mesmo em relação à Audrey e acaba compartilhando soluções temporárias para ele. Uma espécie de triângulo amoroso compensatório se estabelece e ambos riem desta situação, um riso pelo inusitado da relação em meio às agruras do Alzheimer. Nada ali parece definitivo, é mais tênue e fugaz que um encontro furtivo num fim de noite.
                


 


As imagens de Fiona jovem (Stacey LaBenge) atestam os males que podem nos acometer, levando lembranças de épocas de esperança e beleza. Trata-se do rememorar de Grant, pálida imagem que vai se esmaecendo a cada vez que surge; igual à paisagem gelada, entre árvores imóveis, que vai se apagando tal a memória de Fiona. Com estes paralelos, Sarah Poley explica o estágio avançado da doença e a imagem que restará dela em Grant. Nenhum truque. Remete-nos ao que ela era antes, quando se encontraram, e do que fomos algum dia, quando jovens. Não é apenas cinema. “Longe Dela” é filme que nos faz sentir os riscos de viver sem provocar lágrimas. O talento de Julie Christie (“Darling, a que amou demais”; “Longe Desse Insensato Mundo”, “Doutor Jivago”) e o equilíbrio de Gordon Pinset nos ajudam assisti-lo com distanciamento.  E a maneira como Sarah Poley trata os relacionamentos na terceira idade contribuem para isto: longe de fugir das atrações sexuais, que não se encerram nesta idade, ela mostra os relacionamentos com humor e suavidade.
                


 


 


Enfim, “Longe Dela” é uma obra para se ver sem preconceito, numa época em que cinema é produzido para platéias barulhentas. Muitas vezes sem o equilíbrio e o tratamento criativo que a história exige. A jovem Sarah Poley (“Doce Amanhã”), em seu primeiro filme, mostra o que aprendeu com Aton Egoyan, diretor canadense acostumado a ter o cotidiano como matéria-prima, e, não por acaso produtor-executivo deste “Longe Dela”, recomendado para aqueles que acham que a eterna juventude é garantida pelo consumo de Cola-Cola, como induzem os comerciais. A vida, definitivamente, não é isto aí.   


 


 


“Longe Dela” (“Away from her”). Drama. Canadá. 2007. 110 minutos. Roteiro: Sarah Poley, baseado no conto de Alice Munro, “O Urso Vem o Alto da Montanha” (The Bear Came Over the Mountain). Direção: Sarah Poley. Elenco: Julie Christie, Gordon Pinset, Olímpia Dukakis, Michael Murphy.


 


    


(1).Alzheimer, Larousse Cultural, Grande Enciclopédia, Nova  Cultural, 1998, pág. 232, Volume 2;


 


 


(2) Idem, idem, obra cit.     

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