Morticínio banalizado

(da série O fascismo quotidiano)


 


Nas últimas festas de fim de ano ampliou-se o costumeiro cortejo de corpos destroçados em nossas estradas e ruas. Durante o feriado prolongado do Natal, houve cerca de duzentas mortes somente nas

O contraste entre a banalização das mortes no trânsito terrestre e o forte impacto das que ocorrem no tráfego aéreo fica mais gritante se ampliamos a referência cronológica. No último ano, o trânsito brasileiro provocou cerca de 40 mil mortes, enquanto os desastres aéreos mataram em torno de 270 pessoas. Se todas as vidas têm o mesmo valor, há algo errado com certas manifestações de emoção coletiva, como a passeata rumo aos escombros da catástrofe de Congonhas organizada por dois grupos de choque da direita chique, o “Cansei” e o “Cria”, com forte apoio da  mediática do capital. 


 


É sobretudo preocupante, para quem considera igual e universal o direito à vida, o aumento de praticamente 18% das mortes no trânsito em 2007, relativamente às  34 mil em 2006. Sancionado pelo então presidente FHC em setembro de 1997, após cerca de seis anos de lenta tramitação nas altas instâncias do poder político, o  Código de Trânsito que entrou em vigor em 1998 corre o risco, dez anos depois, de seguir o destino dos três que o precederam, o de 1927, o de 1941 e o de 1966, todos eles inócuos, servindo apenas para acobertar a impunidade motorizada. A inoperância dos dois primeiros explica-se em alguma medida por serem anteriores ao surgimento da produção automobilística nacional. Mas que um código promulgado em 1966, com as “montadoras” em pleno funcionamento, seja tão omisso e inconseqüente, só se explica por um complexo cultural fortemente marcado pela insensibilidade social e pelo egoísmo de classe dos abastados, que reproduziam, no volante, sua mentalidade de donos do país. As ''autoridades'', em todos os níveis, sempre complacentes, garantiam impunidade para os delitos do “beautiful people”.


 


Um exemplo, entre muitos outros, da inconsciência dos ricaços está numa reportagem “de capa” dum suplemento de O Estado de S Paulo (de 8-11-1991), nostalgicamente intitulada “Os quarteirões da tradição”. Referindo-se ao ano de 1965, o repórter conta que “nessa época a juventude paulistana começou a deixar de descer a Rua Augusta a 120 por hora para experimentar as emoções da Joaquim Floriano, ao volante de envenenados Mustangs, Pumas e Porshes”.  Por  “juventude paulistana”, em sua sinédoque de sabujo, o repórter entende um punhado de filhinhos de papais milionários. Que eles estivessem eufóricos, compreende-se: o golpe triunfara, a ditadura cripto-fascista ia de vento em popa, comunistas e outros perigosos subversivos estavam presos, ou clandestinos, ou exilados e a ordem que interessava (a da propriedade e dos interesses estababelecidos), plenamente restabelecida. Quem se importava com a desordem promovida pelos garotões pilotando na Joaquim Floriano, a 120 por hora, seus carros-esporte importados? 


 


Não surpreende que, durante a ditadura, a taxa de vítimas fatais do trânsito relativamente à frota em circulação era escandalosamente maior do que em países de trânsito minimamente civilizado. Segundo o Jornal do Brasil de 14-5-1978,  “o trânsito do Brasil é o que apresenta maior índice de mortes em todo o mundo, com 25,9 vítimas anuais para cada grupo de 10 mil veículos, segundo estatísticas de 1975, o que equivale a oito vezes mais do que nos Estados Unidos, cinco vezes no Japão e na Inglaterra e três na França e na Alemanha”. Acrescenta que “segundo estatísticas moderadas, cerca de 400.000 acidentes ocorreram em 1976, em todo o país, com 150.000 feridos e 16.500 mortos” e também que no Rio de Janeiro, das 7.848 mortes violentas em 1975, 3.099 foram vítimas do trânsito (dos quais 1.633 de atropelamento), para 986 vítimas de homicídios, 561 de acidentes de trabalho e 162 suicídios.


 


Não há de ter sido por coincidência que os campeonatos mundiais de acidentes de trânsito e de acidentes de trabalho foram conquistados pelo Brasil durante os anos sombrios em que as ''questões de segurança'' estavam confiadas à OBAN, aos DOI-CODI e ao SNI. Mas o regime militar apenas agravou os efeitos perversos do crescimento capitalista acelerado num país de fraca cultura democrática, em que persistem desigualdades, privilégios e discriminações sociais cuja matriz histórica provém da polarização casa grande-senzala.


 


Exatamente por ter sido, diferentemente dos precedentes,  elaborado com sério propósito de pôr fim ao “vale tudo” no trânsito, rompendo com décadas de descaso e de impunidade, o Código atual é, ou mais precisamente, poderia ser um instrumento a serviço da segurança da população. Seu fracasso terá tanto mais graves conseqüências que nos dez últimos anos a frota de quatro rodas do país pulou de 28,8 milhões para quase 50 milhões de veículos. Continuará crescendo ainda mais, proporcionalmente ao aumento da produção  automobilística no Brasil, que ultrapassou 3 milhões de veículos em 2007, com uma taxa de crescimento de cerca de 15% em relação a 2006.


 


Claro que boas leis não bastam, mas só um niilista militante diria que tanto faz as leis serem boas ou péssimas. Apenas por ter jogado na lata de lixo as legislações de trânsito feitas sob medida para não punir os delitos homicidas, esse Código já mereceria apoio. Entretanto, mesmo legislações frouxas como as anteriores teriam sido menos ineficazes se aplicadas com firme sentido de defesa da população, sobretudo daquela que anda a pé. O mal é que, ao longo de nossa história nacional, mais ainda do que boas leis, tem-nos faltado aquilo que os anglo-saxônicos chamam law-enforcement, isto é, capacidade de impor  respeito à lei. Numa perversa dialética, há entre nós muito enforcement, mas à margem e ao arrepio da lei. Sem entrar a fundo na discussão do premiado Tropa de Elite, parece-nos que o filme ilustra bem a mentalidade, mais difundida do que gostaríamos de admitir, dos que apoiam a violação da lei pela polícia com o argumento de que não há outra maneira de enfrentar os marginais. Diante da corrupção generalizada da PM, prioritariamente ocupada no loteamento de diversas modalidades de achaque e de outros negócios criminosos, só os métodos bestiais do BOP seriam eficientes. Para manter a ordem estabelecida, é preciso violar a lei. Os contraventores contumazes das leis do trânsito estão também entre os que banalizam a desgraça. “Não tem jeito  de respeitar o Código”.  “Não adianta obedecer ao sinal vermelho, às faixas de pedestres, à calçada, à contra-mão, aos limites de velocidade etc.”.   


       


É verdade que o povo no volante é tão incivil quanto a burguesia.  Mas como é a burguesia e não o povo que manda no país e é principalmente o povo (por andar quase sempre a pé) que sofre as consequências da incivilidade generalizada, é sobre a burguesia que recaem as responsabilidades políticas e éticas do caos  do trânsito – bem como de outro caos. Daí a importância, para a esquerda brasileira, de abrir os olhos para essa questão. É evidente, com efeito, que não se pode considerar democrata quem não respeita o povo e quem permanece indiferente diante do desrespeito sistemático ao povo.

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