“Na Estrada”: Retrato de uma época

Filme do diretor Walter Salles mostra a “geração beat” presa em seus próprios impasses

Enfrentar um ícone da literatura não é tarefa fácil. Walter Salles deve ter sentido isto ao filmar o roteiro que Jose Rivera adaptou de “On The Road”(“Na Estrada”). A escritura de Jack Kerouac pode ser lida como “história de estrada”, quando se trata das descobertas de um país continental pelos filhos da classe média e da pequena burguesia, loucos para se desvencilhar da carga lançada em suas costas, no pós-guerra nos Estados Unidos. Caiu na estrada, curtindo embalos, jazz e amizade, criando a “Geração Beat”, de ritmo louco, alucinado, e abrindo caminho para os agitados anos 60.

Daí a opção de Salles e Rivera pelo “Road Movie”, o “filme de estrada” que busca captar as ansiedades de Sal Paradise (Sam Riley) e de Dean Moriarty (Garret Hedlund), centro da narrativa autobiográfica de Kerouac. Eles lançam Paradise, na primeira parte, em caminhadas pela vastidão desolada do país, pegando carona, tendo caso com a mexicana Terry (Alice Braga) sem ligar-se aos problemas dos deserdados que encontra pela frente. É um outsider, preso a si mesmo, característica dos “beats”, salvo Allen Ginsberg, cujo poema “O Uivo” é o livro de sua geração.

Com Paradise, chega-se à segunda parte, onde inúmeros personagens gravitam às voltas dele e do ex-presidiário e inconstante Dean. Vê-se o poeta Carlo Marx (Tom Sturridge), as jovens Marylou (Kristern Stewart) e Camille (Kristern Durst) e outros que entram e saem dos entrechos. O próprio Old Bull Lee (Viggo Mortensen) só emerge muito depois, numa aparição fugaz. São colagens rápidas, sem contextualização, que torna a narrativa confusa. O espectador fica sem saber o papel deles na história, e com eles não se identifica.

O filme, no entanto, cresce na terceira e última parte, quando a dupla relação de Dean com Marylou e Camille ganha força, devido à indecisão dele. E os conflitos de sua amizade com Paradise emergem, dando sentido às andanças do amigo pelo país e ao seu comportamento inconstante. Primeiro ele instiga o puritano Sal a transar com Marylou, com ele deitado ao lado deles na cama; depois Camille magoada com suas traições o expulsa de casa, mesmo grávida da segunda filha deles. Mas são duas sequências cruciais que o desvendam, de fato:

Desacralizar o ícone
I – A da maneira como ele abandona Paradise doente num quarto de hotel fuleiro na Cidade do México;

II – O fim da atribulada amizade com Paradise, quando eles se reencontram em Nova York, e o amigo não lhe dá uma nova chance.

O espectador pode nestas sequências sentir e se emocionar com os personagens, apreender seus impasses e limites. Na estrada, literalmente, Paradise e Dean convivem com andarilhos, proletários, afro-estadunidenses, mexicanos, sexprofs (profissionais do sexo) e seus amigos burgueses e de classe média. Kerouc os faz orbitar em torno deles. Daí ter captado o outro lado dos EUA: o da fragilidade do sonho americano.

Kerouc, em sua escrita confessional, se permite instante de reflexão, de deixar o leitor penetrar na paisagem, sentir o cheiro e ouvir os sons. Nos capítulos finais do livro, ele mostra a loucura do desenraizado Dean, dirigindo o Cadillac Limousine de Denver, Colorado, a Nova York, milhares de quilômetros, numa busca sem sentido (1). Kerouac tem olhos ainda para o México daqueles anos. Sobressai o místico, a pobreza e a marginalização dos índios e trabalhadores mexicanos perdidos nas planícies e montanhas desoladas.

E, ele, Kerouac, consegue conjugar as loucuras de parte de sua geração com sua visão das contradições sociais, comparando-as com as dos jovens estadunidenses. O livro é sua vivência, marca de sua literatura. Ele pegou seus amigos e fez deles o retrato da “Geração Beat”.

Barry Miles, na biografia de Jack Kerouac, “King of the beats”, “Rei dos Beats” (2) dá nome a cada uma deles. Dean Moriarty (Neal Cassady), Carlo Marx (Allen Ginsberg), Camille (Carolyn), Marylou (LuAnne Henderson) e Bull (William Burroughs). E não se furta em desmistificar Kerouac, mostrando-o como direitista e racista. Egocêntrico, que se valia dos amigos para desnudá-los em seus livros. Dá para sentir as visões diferentes da mesma obra. Salles explica seu ponto de partida numa entrevista ao crítico mineiro Marcelo Miranda, de “O Tempo”.
”O filme que fizemos vem de 2006, a partir de uma cópia do manuscrito original de ´On the Road`, que o irmão da última mulher do Jack Kerouac tinha guardado. Ela nos confiou este material” (3). Em suma, adaptações são feitas de escolhas, ainda mais se tratando de literatura e cinema. Sempre sobram fios que poderiam ampliar a interação dos personagens, pondo-os em contato com o entorno e os seres/personagens que reforçam o contexto e clareiam suas intenções. E, sobretudo, desacralizar o ícone, ainda que seja “On the Road”.

“Na Estrada” (“On the Road”).
Brasil/EUA/ /França. 2011.
Drama. 137 minutos.
Música: Gustavo Santaolalla.
Fotografia: Eric Gauthier.
Roteiro: Jose Rivera, baseado na obra homônima de Jack Kerouac.
Elenco: Garret Hedlund, Sam Riley, Kristen Stewart, Kristen Durst, Alice Braga, Viggo Mortensen.

(1) Kerouac, Jack, On the Road, Pé na Estrada, Editora Brasiliense, 1984, pág. 235;
(2) Miles, Barry, Jack Kerouac, king of the beats, José Olímpio Editora, 2012, págs. 216/217;
3. Miranda, Marcelo, Andando pela América, Magazine, O Tempo, BH /MG, quinta-feira, 12/07/2012, pág.4.

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