“Na Natureza Selvagem”: Reflexos da contracultura

O ator e diretor estadunidense Sean Penn mergulha na contracultura para contar a história real de jovem da classe média alta que abandona a família para viajar pelos Estados Unidos e entrar em contato com a natureza, no Alasca, e mostrar o que restou d

Em 1992, o recém-formado Christopher McCandless deixa o conforto de sua família para ir de encontro à natureza. Sua busca o faz perambular pelos Estados Unidos, de cidade em cidade, de estado em estado, o que lhe permite desvendar espaços urbanos e rurais e conhecer pessoas das mais diversas tendências e visões de vida. E, uma vez superada cada etapa dessa viagem, se refugia na vastidão gelada do Alaska, ainda selvagem. Em resumo esta é a história real do jovem de classe média alta, que aos 23 anos ousou desafiar os pais e o modo de vida estadunidense, como forma de definir a si mesmo e recusa à estrutura capitalista, mais apegada ao dinheiro que ao equilíbrio entre o ser humano e o meio em que vive. O ator Sean Penn é o diretor e roteirista dessa saga de um jovem que, ao desafiar as estruturas sócio-econômicas de seu país, mostra plena identidade com os heróis estadunidenses: sua revolta é individual e sua tentativa de retorno à natureza é mais romântica que representativa de uma tomada de posição que leve a atos conseqüentes e arrebanhe jovens iguais a ele para uma denúncia coletiva do sistema. Ao não escapar ao estigma do herói individualista encerra sua saga numa tragédia de um homem só, que, afinal, acaba em si próprio.


 


 


Até chegar a este impasse, típico do cinema estadunidense, o diretor Sean Penn mergulha na vasta paisagem urbana e rural americana, o que faz de “Em Natureza Selvagem”, baseado no livro homônimo de Jon Krakauer, co-roteirista do filme, também um painel sobre um lado desconhecido desse país. E não só isto, nos permite entrar em contato com personagens esquecidos, embora representativos da contracultura dos anos 60 e da tentativa de se criar uma outra América, como se falava naquela década. McCandless (Emile Hirsch) é o jovem idealista que entra em contato com uma “fauna” que habita locais ermos, próximos da natureza, sem planos imediatos e, por isto, entregues a contemplação, a viagens interiores e à relação estreita com seus pares. Com o casal hippie, cinqüentão, com seu trailer, vivendo temporariamente à beira mar, aprende a não se apegar ao imediato, à pressa, a busca do que está além de sua visão. Muito do que ele já quer e não sabe como a ele reagir.


 


 


E se conscientiza de que aquela vida, longe de ser apenas uma escolha, é também uma imposição histórica que não os livra das contradições familiares. Num belo diálogo com McCandless, Wayne Westerberg (Catherine Keener), hippie de meia idade, desabafa sobre a relação com o companheiro Rainey (Brian Dierker) e a saudade do filho que se foi e sobre o qual nenhuma notícia tem. Demonstra o quanto àqueles que tentaram criar uma cultura alternativa não escaparam às agruras da convivência humana.


 


 


Penn equilibra as cenas deixando a sensibilidade deve aflorar


 


 


É ainda com este casal que o jovem  McCandless irá atestar sua dignidade, sua ética, se impor limites ignorados pela sociedade de consumo. Vê-se envolvido por Tracy, guitarrista adolescente (Kristen Stewart), liberada, que busca nele uma forma de atenuar a solidão, o distanciamento e o cotidiano que a comunidade hippie a condiciona. Está ali como que deixada para o que vier, e quando vier, pois a vida comunitária não se impõe elaborações, apenas se envolve em pequenas transações comerciais (venda de livros, artesanato, por exemplo), no lento fluir do cotidiano enquanto a vida segue rápida nas rodovias com seus caminhões, automóveis e carretas. E eles estão à margem das correias que a tudo gira velozmente, mas que suas opções culturais e modo de vida rechaçam.  E ela, frágil, menina, mostra-lhe seu trabalho, canta para ele, e tenta a ele se entregar. A docilidade de Kristen Stewart e a leveza de Hisch encantam. O corpo que se lhe apresenta está em formação, o riso da garota é infantil, e ele, centrado na recusa ao comportamento liberado, não se deixa seduzir. Ela não entende e ele não lhe explica sua negação.


 


 


Penn, ator, tem noção do que representa uma cena dessa natureza, em que os atores devem traduzir em gestos mínimos toda uma gama de preceitos. Está ali a liberação feminina, a liberdade de a mulher escolher seu parceiro e a ele se entregar, e a estrutura moral que o homem deve ter para entender o que representa, de fato, essa entrega. Penn não se demora nesta seqüência, ela dura o tempo necessário para transmitir o que ele deseja e nós, espectadores, devemos sentir. Igual ao senso nostálgico transmitido por Rainey, hippie de meia idade, sentado num monte à beira mar. Algo ficou para trás, aqueles momentos são seus estertores, não dá para regressar ao clima dos anos 60, época de grande mobilização de massa, de revoluções terceiro-mundistas, de luta pelas liberdades civis, das mulheres, negros, juventude. Rainey agora parece deslocado à beira mar e, depois, na periferia da cidade, vivendo numa comunidade hippie. Parte de sua visão se concretiza na recusa de McCandless em aceitar a sociedade do dinheiro, mas também em sua busca de outra forma de vida. Algo dele se perdeu e se conforma em permanecer atrás de uma banca de livros ou vendo ao longe a companheira banhar-se ao mar.


 


 


Sociedade hippie vive, no filme, seu momento crepuscular


 


 


Não menos significativa é a visão do velho hippie que se diz conhecido e apreciado, vivendo nas proximidades de um velho campo de experiências militares. Precisa ser ouvido, mostrar como os produtos químicos se transformam numa pasta viscosa e emborrachada. São restos do que se pretendeu fazer na época da guerra fria. Representativa de outro instante histórico quando a revolução estava às portas, bastava erguer o fuzil e invadir o Palácio de Inverno. McCandless acompanha as explicações do velho hippie e nada acrescenta, apenas contempla, ouve, é de outro tempo, de outras vivências, embora esteja tomado por muitas daquelas idéias e comportamentos. Há, no entanto, vida nestes seres com suas vestes e cabelos longos, coloridos, configurada no corpo e principalmente nas faces. Penn ao delatar-se nesta relação McCandless/hippies procura traçar paralelos entre diferentes gerações e tentativas de criar novas formas de construção social. No entanto, a busca do jovem classe média alta é individual, a dos hippies é coletiva. Vivem em comunidades, com suas próprias regras. Ambos são românticas, surgidas das entranhas e das contradições da sociedade capitalista em plena crise.


 


 


Os hippies já decantam suas experiências, vivem uma etapa crepuscular, ele, McCandless, não, quer criar novas concepções, a partir destas vivências. E transmiti-las a quem encontrar em suas andanças. O faz com o velho militar Ron Franz (Hall Holbrook), que vive numa rústica casa junto à montanha, completa seus ganhos de aposentado trabalhando como mecânico; e nada mais espera do futuro. Aqui, com idéias já estruturadas, McCandless busca atraí-lo para seu campo, para a relação com o mundo ao redor, notadamente com a natureza. O velho e o novo. Uma forte atração se estabelece entre ambos, permitindo a Penn novamente fazer brilhar os atores. O velho e bom Hall Holbrook, de “Todos os Homens do Presidente”, se deixa levar pelo jovem Hirsch e se completam.  Assim, “Na Natureza Selvagem” é um filme em que brilham os atores, em que se percebe que estão à vontade para construir seus personagens. Transmitem estados de espírito e relação com o ambiente de maneira sutil, sem se impor com gritarias, gestos demasiados. E não se trata do famigerado minimalismo. Mas é também um filme sobre os trabalhos marginais, tais como os de operador de colhedeiras, de cozinheiro em lanchonete,  mas também sobre a vida de indigente, de desempregado, de caroneiro em trens de carga e, sobretudo, de deserdado do sistema capitalista, que a cada dia cria mais seres à margem da estrutura produtiva, enfim, do fluxo da sociedade, em si.


 


 


Sistema não permite ao jovem ter com o que se identificar


 


 


Uma gama de situações, personagens, de cenários que dá uma visão diferente dos Estados Unidos. Não é o país da pujança econômica, das belas mansões e dos arranha-céus sofisticados, mas de pessoas, de lugares e de situações que estão à margem da riqueza. A pobreza emerge com uma força só encontrável no Terceiro Mundo. Todos aqueles rostos sofridos, olhares tristes traduzem fome e desamparo. McCandless, em certo momento, sem documento, dinheiro ou perspectiva, torna-se um deles. Está não só à margem, como sem quaisquer possibilidades de se inserir em qualquer contexto social. Aqueles homens e mulheres que sobrevivem freqüentando as filas da assistência social, foram em outros momentos integrados à produção, agora estão expelidos para as brumas; o degrau mais baixo que o sistema criou. Muitos perderam inclusive, iguais à McCandless, a identidade, e não se trata do documento, sim do com que se identificar. Noutros instantes, ele sobrevive enquanto operador de colhedeira, atraindo para si uma gama de elogios, e transita por espaços onde sua identidade é a do ser integrado à produção. Mas o trabalho é sazonal, uma vez concluída a colheita, ele tem de circular, em busca de nova ocupação e não se trata de emprego, pois este fica cada vez mais raro.


 


Penn, neste apanhado da vida dos “out-siders” estadunidenses, se permite um olhar sempre crítico, não idealista das entranhas se seu país. Vê os que contratam mão-de-obra temporária como picaretas; suscetíveis de prisão. Podem ser bonachões, risonhos,  nem por isto são menos perigosos. Faz isto sem discurso, apenas através de seqüências bem arquitetadas.  Não há falação, apenas imagens de rádiopatrulhas chegando, enquanto o fazendeiro (Vince Vaughan), patrão sazonal de McCandless, percebe que irá para detrás das grades. São instantes em que se percebe a boa estrutura do roteiro e da forma como Penn conduz a narrativa. E não se está diante de um filme político, mas de um drama social, que, no fundo também é político, de cunho marcadamente ideológico, dada às posições abertamente de esquerda do diretor. Às vezes sua câmera está próxima dos personagens, noutras ela se afasta, com tomadas em grande plano, situando o espaço, sem perder o contexto. Principalmente quando insere frases, que contribuem para a compreensão do estado de espírito e das idéias de McCandless, saídas das elaborações libertárias de Leon Tostoi, Henry Davi Thoreau e Jack London. E se vale de comentários em primeira e terceira pessoa, dando ao filme caráter experimental.


 


 


Pais de McCandless não o deixam construir seu caminho


 


 


O painel traçado por Penn ao longo de 148 minutos, longe de cansar, nos atrai, pois, narrado em flashback, mergulha nas dificuldades de ambientação de McCandless em seu refúgio e nas indagações feitas por ele ao longo de sua caminhada. Há forte condenação da família, da forma como a classe média alta se apega a seu status e a seus projetos, incluem neles seus filhos sem pensar nos interesses e nas alternativas que estes procuram construir, para erguer estruturas sociais e políticas novas. Daí se surpreenderem quando filhos, iguais a McCandless, se negam a ouvi-los e deles se afastam, definitivamente. Seus pais, o físico Walt (William Hurt) e a dona de casa Billie (Márcia Gay Harden) só se dão conta do mal que lhe causaram quando ele não mais responde a seus chamados. Esta condenação fecha o círculo das exposições narrativas de Penn, ajudando-nos a entender a opção de McCandless. Há um cansaço e um mal-estar na sociedade neoliberal, globalizada, ainda não todo compreendido, que permite a criação de recusas e movimentos. Enfim, o impasse continua. Penn o mostra principalmente na tentativa de McCandless se relacionar com a natureza, depois de se despir dos adornos capitalistas.


 


 


Ele, McCandless, não está suficientemente aparelhado, psicológica, técnica e experimentalmente para sobreviver em meio ao habitat que escolheu como seu, em oposição a uma estrutura da qual fazia parte, podendo dela desfrutar todas as facilidades. Viver como Robinson Crusoé no final do século XX, dotado apenas de um manual de botânica, é insuficiente. McCandless segue caminho inverso ao de Jeremiah Johnson, em “Mais Forte que a Vingança”, western-ecológico do outrora bom cineasta Sidney Pollack (“Esta Mulher é Proibida”, “A Noite dos Desesperados”). Enquanto este vai se adaptando ao meio ambiente gelado das montanhas, integrando à comunidade indígena, caçando e trocando peles, ou seja, construindo uma relação de sobrevivência em meio à natureza, McCandless retorna ao período pré-organização social, etapa da colheita de folhas e de caça. Não está, definitivamente, preparado para sobreviver nas montanhas e planícies do Alasca. Como Robinson Crusoé moderno, nenhuma Sexta-feira o acompanha. Só ampara-o os restos de uma civilização que ele abandona: o velho ônibus. O afastamento da natureza, o privou das armas necessárias à sobrevivência em ambiente hostil. E, assim, como ele, qualquer pessoa acostumada ao meio urbano, em que a circulação de produtos encerra em si a relação com qualquer forma de vida rural, gerada pelo meio ambiente, transformada, a partir daí, em forma de vida artificial, sucumbirá. Nem os manuais sobre botânica suprem esta deficiência. Não basta assistir ou ler, via mídia, sobre a rudeza da vida selvagem: a experiência é que construirá a sobrevivência.


 


“Na Natureza Selvagem” termina por servir para constatarmos como mesmo cineastas engajados como Penn não conseguem, embora seu filme seja baseado em fatos reais, fugir ao esquema do personagem que traça seu próprio caminho. Uma forma dramatúrgica que nos permite com ele nos identificar, porém, mantém a escrita típica do filme estadunidense, hollywoodiano, de construir o herói que tenta resolver tudo à sua maneira. Penn foge um pouco a este esquema ao mostrar a impossibilidade de isto ser impossível. O individualismo, próprio do sistema capitalista, notadamente estadunidense, no entanto está lá. O contraponto à comunidade hippie em seu crepúsculo serve-lhe, no entanto, de contraponto: estes pelo menos sobreviveram, em sua forma alternativa, de criar comunidades que vivem da produção artesanal, ainda que às custas de materiais saídos das linhas de produção industrial, portanto capitalista,  ao que, na prática,  se contrapõem. E a opção de McCandless, em seu delírio, acaba sendo tão só uma experiência individual, romântica, sem chance alguma de sobreviver num ambiente hostil como o da natureza. E ele mesmo, nestes instantes, o compreende ao dizer que lhe faltou alguém para dividir com ele esta experiência. É isso. 


             
“Na Natureza Selvagem” (“Into de Wild”). Drama. EUA. 2007. 148 minutos.  Roteiro: Sean Penn/Jon Krakauer, baseado no livro homônimo deste. Direção: Sean Penn. Elenco: Emile Hirsch, Márcia Gay Harden, William Hurt, Catherine Keener, Vince Vaughn, Hal Holbrook, Kristen Stewart, Jena Malone, Brian Dierker.                 
               

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor