Nelson Rodrigues, o maior craque da crônica de futebol

Ele na crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos

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Nelson Rodrigues foi, de longe, o maior e melhor e excelso gênio da literatura de futebol no Brasil. Disse tudo? Não, disse menos. Quero dizer: o sonho de todo escritor, o de ser lido pelas massas, discutido por elas, sem cair um só milímetro da sua dignidade artística, o sonho de escrever para todos, esse possível um dia Nelson Rodrigues conseguiu. Disse tudo? Menos ainda, porque devo dizer: não conheço, na literatura mundial, alguém que tenha sido tão magnífico quanto Nelson Rodrigues na crônica esportiva.

Se pensam que me engano, olhem e amaciem na boca feito fruta rara o que Nelson Rodrigues escreveu sobre um jogo de Pelé, antes de começar a Copa do Mundo de 1958. Para não dizê-lo um profeta, devo dizer: a sensibilidade, a genial arte de um escritor descobriu e revelou um fenômeno:

“Depois do jogo América x Santos seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura que o meu confrade Laurence chama de ‘o Domingos da Guia do ataque’. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — 17 anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de 40, custo a crer que alguém possa ter 17 anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo como uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se ‘Imperador Jones’, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

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O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônia. Já lhe perguntaram: — Quem é o maior meia do mundo?. Ele respondeu com a ênfase das certezas eternas: — Eu. Insistiram: — Qual é o maior ponta do mundo? E Pelé: — Eu. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé… Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e, mesmo, insolente de que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau”.

Isso se deu em crônica de março de 1958. Se a epifania de Pelé antes do reconhecimento universal não causar espanto, olhem, mastiguem lento e com calma o que Nelson escreveu sobre Garrincha:

“Nos acrobatas chineses o que existe é o esforço, é a técnica, é o virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: — ‘Esse Garrincha é o maior!’. O ‘seu’ Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara”.

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Cultivar a bola como uma orquídea rara — isso já deixou de ser futebol e penetrou na delicadeza da arte, no mesmo passo em que vemos a fina e macia pétala que se toca com a percepção da vida fugaz. Mas é uma bola. É uma crônica. Nesta altura eu me sinto um escritor absolutamente desnecessário. O que disser parecerá acento circunflexo sobre o céu azul. Pode? Ser leitor dessas crônicas é tão agradável, que nossa única transmissão possível é copiá-la em trechos, porque o tempo urgente não permite a cópia inteira, o que seria um serviço de utilidade pública e educação estética. É irresistível.

Em O craque sem idade — “A bola tem um instinto clarividente e infalível que a faz encontrar e acompanhar o verdadeiro craque. Foi o que aconteceu: — a pelota não largou Zizinho, a pelota o farejava e seguia com uma fidelidade de cadelinha ao seu dono. (Sim, amigos: — há na bola uma alma de cachorra.). No fim de certo tempo, tínhamos a ilusão de que só Zizinho jogava. Deixara de ser um espetáculo de 22 homens, mais o juiz e os bandeirinhas. Zizinho triturava os outros ou, ainda, Zizinho afundava os outros numa sombra irremediável. Eis o fato: — a partida foi um show pessoal e intransferível.”

Em Vitória Fla-Flu — “O arqueiro Calos Alberto, que chegara a encostar a mão na bola, caiu de joelhos e, assim ficou, de joelhos e atônito, por muito tempo. Dir-se-ia que o gol de Índio era um altar, diante do qual ele se prostrava”.

Em O desfigurado Fluminense — “A batalha definiu-se, contra o Fluminense, no primeiro minuto. Minto: nos primeiros trinta segundos, exatamente. Vejam vocês: — trinta segundos bastaram para liquidar o líder de sete dias. Mas examinemos o lance fatal. Foi assim: — na primeira carga do Bangu, Zizinho, de fora da área, atira. Foi, sem dúvida, um tiro violento. Mas, de longe, muito longe. Que fez Castilho? Apenas isto: — apanha a bola e larga. Devia, em seguida, agarrá-la, de novo. E, no entanto, o arqueiro tricolor parou, ficou só espiando. Conclusão: veio Wilson e empurrou, docemente. Era o primeiro gol do Bangu e, ao mesmo tempo, a derrota do Fluminense”.

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Em Derrota brasileira — “Sábado, enquanto o Fluminense perdia no Pacaembu, eu assistia, no Maracanã pequeno, à luta Carlson x Leão de Portugal. E, então, o locutor do estádio, Jayme Ferreira, começou a anunciar os gols do Honvéd — primeiro, segundo, terceiro, quarto, cinco, meia dúzia…”.

E aqui, me permitam, por favor, um parêntese no céu azul. No parágrafo acima, Nelson Rodrigues fala de jogo a que não assistira. E o leitor, se notar, não sente a falta da presença física do repórter. Onde já se viu isso na imprensa esportiva do mundo? Ele acha pouco e na crônica da semana seguinte, sob o título genial de A Derrota Triunfal escreve:

“O que mais admira, em nós, jornalistas, é a desenvolta irresponsabilidade com que escrevemos as nossas barbaridades. Por exemplo: a propósito do jogo Flamengo x Honvéd, um matutino de domingo escreve o seguinte: ‘depois do segundo tento, o calor tomou conta da rapaziada magiar…’ Leio isso e mergulho numa desesperada meditação. Cabem duas perguntas. Primeira: ‘Só fazia calor para os húngaros e para o Flamengo, não? Segunda: ‘Antes do segundo tento, fazia frio no Maracanã, nevava no Maracanã?’… Eu compreendo que a temporada húngara induz qualquer um a ser idiota. Façamos, porém, uma tentativa de inteligência. E, então, chegaremos à visão certa da batalha de sábado. É a seguinte: — não foi o Honvéd que venceu o Flamengo por 3 x 2. Foi o Flamengo que venceu o Honvéd por 2 x 3”.

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Essa crônica esportiva, de gênero e talento que os espanhóis diriam ser esquisito, e aqui recupero pelos sentidos de muito bom e raro, esse texto de Nelson a gente absorve com um prazer e com um sorriso, que posto na face não se desgruda mais. Como é que ele conseguia escrever tão bem, no meio de uma redação barulhenta, sob os tiros de mais de 40 metralhadoras das máquinas de escrever, e nuvens de cigarros, e gritos, e piadas, e explosões de raiva e confusão? Penso que seria como fazer amor em meio às arquibancadas de um estádio durante um Fla x Flu. Vocês já veem que a gente lê Nelson Rodrigues e fica meio contaminado pelo espírito dele.

“Os passes de Didi! São precisos, exatos, irretocáveis como um soneto antigo. Direi mais, se me permitem a comparação: — Didi é a mãe dos pernas-de-pau. Quantos companheiros vivem, e sobrevivem, à sua sombra? Ele não depende de ninguém e quantos dependem dele? Ao lado de Didi, o perna-de-pau já o é muito menos”.

Ele — Nelson Rodrigues em seus craques — arranca humor e graça em frases que guardam sempre os mesmos recursos, imagens, mas ainda assim surpreendem. Ele na crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson usa sempre o exagero, as expressões mais despudoradas, melodramáticas, truques de circo na hipérbole, com o maior despudor e cinismo, mas ainda assim o leitor era, é driblado, assim como os marcadores de Garrincha. Que encanto! Com a diferença que a gente é driblado, mas não se frustra, porque enche o peito da gente de felicidade.

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“Olhem Pelé, examinem suas fotografias e caiam das nuvens. É, de fato, um menino, um garoto. Se quisesse entrar num filme da Brigitte Bardot, seria barrado, seria enxotado. Mas reparem: é um gênio indubitável. Digo e repito: gênio. Pelé podia virar-se para Miguel Ângelo, Homero ou Dante e cumprimentá-los, com íntima efusão: ‘Como vai, colega?’ ”.

Na verdade, mesmo sem o seu teatro, Nelson Rodrigues seria imortal, se permitem mais um acento circunflexo no mar de suas crônicas. Dele pode ser dito o mesmo que ele escreveu sobre a morte do romancista José Lins do Rego:

“Morto e, no entanto, parece mais vivo do que muitos que andam por aí, que circulam, que batem nas nossas costas e contam piadas. Não resta dúvida que ‘morrer’ significa, em última análise, um pouco de vocação. Já falei nos vivos tão pouco militantes que temos vontade de lhes enviar coroas ou de lhes atirar na cara a última pá de cal. Esses têm, sim, a vocação da morte. Fomos, todos, enterrá-lo no chão muito doce de São João Batista. Mas é como se não existisse a mínima relação entre o funeral e Zé Lins, entre o caixão e o grande romancista.”

No país das chuteiras, ninguém escreveu sobre o futebol com tanta graça e gênio quanto ele, o recifense Nelson Rodrigues.

*Texto do Dicionário Amoroso do Recife

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