“Novo Mundo”: Horror da Imigração

Em seu filme, o diretor italiano Emanuele Crialese usa o drama dos imigrantes italianos do início do século, que tentaram entrar nos EUA, para analisar os impasses dos que hoje procuram uma vida melhor nos países do Primeiro Mundo e são submetidos a maus-

A ruptura que se dá entre o sonho e a realidade, em  “Novo Mundo”, do italiano Emanuele Crialese, faz com que a visão que os camponeses sicilianos têm sobre a “Terra da Promissão” se torne um pesadelo, antes mesmo que desembarquem na Ilha de Ellis, nos Estados Unidos, e realizem suas fantasias. Pois é disto que o diretor trata em seu filme. O quanto à necessidade de uma vida melhor está eivada de crendices, de projeções e de certezas que se esboroam ao se defrontar com a crueza das exigências dos agentes da emigração norte-americanos cuja tarefa é selecionar os melhores, os mais aptos, entre os pretendentes a entrar em seu país. É esta seleção, enfim, que irá mudar a imagem que a família Mancuso construiu a partir de fotos que lhes foram enviadas pelos amigos, emigrados para os EUA, no início do século 20. Nelas o dinheiro nasce em árvores e os bezerros são do tamanho das galinhas e, melhor, uma vez ricos podem banhar-se em rios de leite.
               



Na região da Sicília onde Salvatore Mancuso (Vincenzo Amato) vive com a mãe e os dois filhos adolescentes, Angelo, e Pietro (Filippo Pucillo) as relações de produção são ainda feudais, centradas no pastoreio de cabras, na posse de pequenas glebas e no trato com o senhorio, que, além de tudo, cuida também dos sortimentos.  As possibilidades de mudança de vida são praticamente nulas. Assim, ele espera que o céu lhe indique o caminho a seguir, como recompensa pela vida miserável a que é submetido. Desconhece qualquer relação entre sua situação e a estrutura sócio-econômica que o prende ao lugar, impossibilitando seu crescimento enquanto trabalhador. Então, a solução só poderá vir mesmo do “Alto”, uma vez que a crendice predomina em seu meio. Numa seqüência em que duas adolescentes procuram sua mãe Fortunata (Aurora Quattrocchi), para escapar a uma maldição, criada pelo desejo e a posse num contato fugaz, Crialese, o confirma.
               


 


Essa crendice expõe as contradições entre o camponês e o meio que vive. Não toma a si as transformações, acredita que elas devem vir do “Alto”. Ela também irá ditar o choque entre as imposições dos agentes da emigração e a família Mancuso, quando desembarca na Ilha de Ellis e é obrigada a se submeter às entrevistas, exames, testes, que, em tese, lhe permitiria, enfim, entrar na “Terra da Promissão”. Crialese leva o espectador em poucas seqüências a entender o comportamento do campesinato, quando entra em contato com outro tipo de relação de sócio-econômica. Ele deixa de ter contato direto com a terra, para se tornar força de trabalho no mercado onde as exigências são, em tudo, diferentes. Existem agora regras, estabelecidas não se sabe por quem, nem de onde vêem; que o desnorteia.


                


Siciliana se recusa a aceitar a perda de seus valores


                


Tudo então lhe parece absurdo. Definitivamente, ele não está preparado para este “novo mundo”. As situações a que é obrigado a enfrentar lhes são desconhecidas. Embarcados, Salvatore, seus filhos e sua mãe, passam a conviver com todo tipo de gente. Dentre elas, Lucy (Charlotte Gainsbourg), uma inglesa perdida no sul da Itália, com quem passa a flertar. É um tipo de mulher desenvolta, desapegada a costumes e normas, interessada em desembarcar nos Estados Unidos por seus próprios meios, ainda que se valha de certos estratagemas para atingir seus objetivos. Ela irá guiar Fortunata de Salvatore na vida grupal a que a viagem obriga as mulheres iguais a ela, desacostumada a se mostrar para as outras. A perda da privacidade a incomoda. Há um amontoado de redes, lençóis, que não a permite, pelo contrário juntam-nas. Lucy, então, se torna o equilíbrio entre a vida caótica na embarcação e a família Mancuso. Está mais preparada para aquele mundo, que não a seduz mais, mostrando-se sempre entediada, desiludida.
                 



Para Lucy o mundo não oferece nenhuma cortina, suas intenções devem ser expostas diretamente, como o faz a Salvatore, desconcertando-o. Crialese introduz jogos, posições, situações que traduzem a descoberta de comportamentos diferentes aos que ele se  acostumara. São belas as seqüências em que eles se cortejam. Há sempre clones, tubos, estruturas a dividi-los. Eles se vêm e somem, para surgir à frente. Não se tocam, a troca de olhares e a empatia advindos daí criam a atmosfera romântica entre Salvatore e Lucy. Embora desconhecidos, eles se complementam. Ela representa a lucidez, a aridez e a crueza dos novos tempos, ele os tempos românticos, ingênuos e puros de uma etapa da história que há muito ficou para trás, mas cujos resquícios ainda se mantêm nele, principalmente. Ele a quer e não sabe como chegar até ela, não fisicamente, mas emocionalmente, ela, pelo contrário, tem bem claro o que almeja dele.
                



Este jogo entre Salvatore e Lucy ajuda o espectador a acompanhar a trajetória de centenas de imigrantes numa travessia rumo ao almejado, mas desconhecido. As projeções de Salvatore surgem entre uma seqüência e outra, avançando o que ele espera alcançar. Algo, no entanto, prenuncia o choque: os costumes arraigados, as particularidades e diferenças comportamentais, a vivência direta com a natureza, ao invés de produtos e normas, vindas não se sabe de onde. Este mal se concentra na mãe e no filho mudo, que se recusam a aceitar o caos estabelecido em sua volta, que os levam a reagir de modo aparentemente inusitado. Por mais que Lucy procure contribui, ele já se estabeleceu. E irá se mostrar com mais clareza quando uma etapa da viagem termina e outra se inicia.


               
Imigrantes vão suprir falta de mão-de-obra barata


               


Na primeira parte que dura mais de uma hora, os Mancuso se tornam seres indiferenciados, massa, pois os imigrantes se transformam num ente único. Têm nomes e individualidade, porém deixam de ser vistos assim. Ao desembarcar na Ilha de Ellis, onde aportavam naqueles anos milhões de imigrantes vindos dos mais diferentes continentes, Crialese elabora a segunda parte de sua epopéia: a da seleção dos que receberão a dádiva dos céus, ou seja, serão aceitos na “Terra da Promissão”. A expectativa, falsa, criada ao longo da primeira parte de que, enfim, a família Mancuso individualizada iria alcançar seus objetivos se muta numa agonia, que põe abaixo toda a fantasia de Salvatore. É quando se compreende aonde o diretor/roteirista quer chegar. Não lhe interessa mostrar a pujança econômica americana, quase potência mundial no início do século XX, fato que ocorrerá somente nos anos 30 e 40; sim, a brutalidade com que os imigrantes, em sua maioria mão-de-obra barata, serão tratados.
               



Crialise não precisou de seqüências nas plantações de algodão ou nos corredores das tecelagens para confirmá-lo. A seleção feita pelos agentes da imigração assemelha-se a uma triagem para o mercado de trabalho. Saúde, educação, sociabilidade, aptidão, são algumas das exigências para o imigrante ser aceito e poder ultrapassar os portões da Ilha de Ellis rumo a uma embarcação que os levará à terra firme. Em dados momentos, as filas, os exames nos corpos nus, assemelham-se aos maus-tratos nazistas durante a falsa viagem, que levava então à câmara de gás. Faz o espectador reviver o drama dos imigrantes do fim do século 20 e o início deste milênio. Desmonta o castelo de sedução do mundo melhor que emoldura a propaganda do Primeiro Mundo. O imigrante longe de ser alguém que tenta realizar seu sonho é mão-de-obra barata para impulsionar a produção e o lucro no mundo capitalista desenvolvido.
               


Não é outra a realidade dos africanos, asiáticos, sul-americanos e europeus do Leste, obrigados a sobreviver nas plantações do sul da Itália, nas fábricas francesas, espanholas, alemãs e inglesas. Ou mesmo nas plantações, serviços e fábricas norte-americanas. Ainda que movimentem 12% do PIB europeu são tratados a pão, água, polícia e cães em seu encalço. Como se dá, para ficar apenas na Europa, com os africanos que deixam seus países para esboroar suas fantasias nas plantações da Calábria, Itália. ”Uma parcela desses imigrantes não vive apenas na ilegalidade, mas em condições de indigência. Sofrem diariamente com os maus-tratos e moram em edifícios abandonados, sem eletricidade ou água, infestados de ratos. Pior: não podem voltar para seu país por causa das dívidas que acumularam com os patrões (…)”, conta o repórter Jamil Chade, em matéria sobre imigração no sul da Itália (1).


               


Camponeses despreparados ajudam a desnudar as fraturas do sistema


               


Não deixa de ser uma denúncia o que faz Crialese, pelas vias da metáfora, da dramaturgia. Fortunata, com sua privacidade e individualidade ameaçada, representa mais que Salvatore, o agente da revolta. Ela se nega a responder às perguntas dos agentes da imigração, se recusa a se despir para os exames e vistorias em seu corpo e a largar seus costumes para ser admitida no “novo mundo”. Não só ela, também o garoto mudo, Ângelo (Francesco Casisa), com seu jeito infantil, se desvenda numa seqüência brilhante. E o velho e o novo se unem para preservar seu direito a manter seus costumes e organicidade. Sua recusa expõe também o direito de o camponês, mesmo despreparado para aquela etapa histórica, desnudar as normas da falsa “Terra da Promissão”, que, teoricamente, lhes permitiriam passar a outra etapa histórica, superior, mantendo seus próprios valores. E também denunciar a dureza de uma seleção que, mais do que permitir o acesso do imigrante a um mercado de trabalho que precisa de sua mão-de-obra, reflete o darwinismo social, da seleção dos mais aptos.
               


Crialese, com “Novo Mundo”, trata de um tema atual a partir da história de milhares de italianos que migraram ou tentaram migrar para os Estados Unidos no início do século passado. Não embeleza ou fantasia o imigrante, nem mitifica, a exemplo de centenas de filmes, os EUA como “Terra da Promissão”. Mostra a Ilha de Ellis como a ante-sala do horror. Os imigrantes que não cumpririam as exigências da Imigração eram deportados, sem direito a segunda chance. Drama hoje vivido por milhões de trabalhadores (as) do planeta, principalmente os do Terceiro Mundo, seduzidos pelas oportunidades oferecidas pelos países desenvolvidos. Ao não permitir que seus personagens ultrapassem os portões da Ilha de Ellis, Crialese deixa na cabeça do espectador só incertezas: o que viria depois daquilo? Certamente, não era de seu interesse. Sua contribuição está em provocar uma indagação neste momento histórico, em que imigrante virou sinônimo de deserdado em países que construíram sua história com a contribuição de milhões de seus nativos, espalhados por todos os continentes, seja na forma de simples imigração, seja na de forçada colonização.


 


“Novo Mundo” (“Nuovomondo”). Itália/Alemanha/França. Drama. 2006. 124 minutos. Roteiro/direção: Emanuele Crialese. Elenco: Charlote Gainsbourg, Vicenzo Amato, Aurora Quattrocchi.



Nota



(1) Chade, Jamil, “Imigrantes ilegais vivem como escravos nas colheitas da Europa”, Internacional, O Estado de São Paulo, domingo, 30/03/08, A16.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor