O amor pede passagem: no mundo das aparências

Com história simples, diretor estadunidense Stephen Belber usa o amor para traçar um retrato do EUA atual e das possibilidades que ele traz para aqueles que ainda acreditam nele para mudar sua vida.

O amor faz cada coisa… Talvez coisas demais, nestes áridos tempos de ficar e deixar pra lá. Na comédia romântica do diretor estadunidense Stephen Belber, “O Amor Pede Passagem”, ele une duas pessoas às voltas com seus dilemas pessoais. Ela, Sue Claussen (Jennifer Aniston), é executiva de uma empresa especializada em aprazíveis pinturas campestres para a rede hoteleira; ele, Mike (Steve Zahn), ajuda os pais a gerenciar o hotel de beira de estrada na desértica Kingman, Arizona. Um dia eles se encontram e, a partir daí, desencadeiam uma série de fatos, típicos das comédias malucas em que o apaixonado tudo faz para conquistar a amada. Mike busca sentido para sua existência; Sue procura a segurança de uma vida a dois. Mas, diferente dele, Mike, ela mantém os pés no chão, tentando driblar as agruras da vida. Dois seres tão díspares geram uma narrativa cheia de volteios suficientes para o espectador divertir-se e entender as contradições de uma sociedade essencialmente consumista e indiferente aos sentimentos alheios.

Uma sociedade em que tudo está no lugar: as ruas são limpas, os carros bem estacionados, os pedestres bem vestidos, o comércio oferece o que o consumidor precisa e a vida flui sem contradições. Mas quando a câmera se aproxima das pessoas revela sua instabilidade. A começar pelo próprio Mike. Com seu jeito de garoto carente, ele começa por romper a dura moldura que Sue manipula para não ser atingida por estilhaços indesejados. Numa sequência filmada no estreito espaço da porta entreaberta, pondo Sue e Mike frente a frente, Belber cria empatia entre os dois, com poucos recursos: diálogo ágil, uma garrafa de vinho e a capacidade dos atores Aniston e Zahn em passar para o expectador as dificuldades do primeiro encontro. A ação pertence a Mike, mas quem domina a cena é Sue, com seu jeito de: ”vamos logo com isso”.

Sue cede, mas em seus próprios termos

Ambos se entregam ao jogo criando uma situação cômica, mas também mostrando a incapacidade de o ser humano moderno abandonar o velho truque da sedução. A iniciativa pertence a Mike, porém, Sue não quer ser dominada. Se é para haver a abordagem amorosa que ela seja em seus termos. Belber o mostra ao colocá-los numa situação esdrúxula, de comédia grossa, ao estilo Adam Sandler. O que contribui para atestar o quanto ela está disposta a ceder e em que condições. Não de uma forma amorosa, sim mecânica, do deixar fazer sem prazer algum. Tipo: “se é para ser assim, faça o que quer”. Pode parecer um estilo frio e realmente é. Sue é capaz de jogar e estar fora do jogo. Para Mike isso não importa. Está ali a mulher que o atrai e ele aceita seus termos desde que possa estar junto dela. Algo inusitado se dá nestas poucas sequências: Belber, além de mostrar quem é Sue, traça o perfil da família de Mike.

O pai, Jerry (o altmaniano Fred Ward), ex-combatente da Guerra do Vietnã, divide a contragosto a gestão do hotel com a mulher Trish (Margo Martindale). É um ser indiferente ao filho, tanto faz o que lhe vai pela mente ou como se comporta amorosamente. A mãe, pelo contrário, não o quer sozinho. O universo de Sue, mais intrincado, porquanto ela escapou aos desencontros de sua família – o pai que a abandonou, a mãe não que vê frequentemente, o namorado Jango (Woody Harrelson), ex-punk, agora milionário do ramo do iogurte natural, que pode lhe dar a segurança financeira que almeja. E contrabalança essa árdua vida prestando assistência aos sem teto e jogando futebol com suas colegas de trabalho. Claro que, com personagens assim a história não segue em linha reta, às vezes é dominada pelo puro romantismo.

Mike só tem um projeto: conquistar Sue Claussen

Belber contorna o problema criando situações em que predominam as incessantes tentativas de Mike conquistar Sue pelas vias mais incompetentes possíveis. Tudo é tão deslocado, tão fora do eixo que ela não sabe como reagir às suas loucuras. Se o espectador não se importar com isso, vai se deliciar com as loucuras do carente apaixonado: a viagem sem intenção de volta, a queda de paraquedas na piscina da mansão de Jango, a serenata desencontrada que não chega direito à amada, até as juras de amor mesmo sabendo que Sue vive com Jango e lhe diz ser esta a vida que prefere. Como nos filmes em que o herói está tomado pela missão – ele faz tudo para tirá-la do castelo que ela vive agora.

Tudo armado por Belber de forma que as sequências atinjam o ápice sem choques entre Sue e Mike. Ela se desmancha em negativas, ele num otimismo que transborda seus sentimentos. Algo nesses desencontros avança mais para a superação que para o rompimento, uma vez que o amor contorna os imprevistos e torna-se a razão única da existência de Mike. Ele não tem outro projeto, só almeja a ter a seu lado. Belber cerca-o de personagens cheios de contradições, o engraçado chinês Al (James Hiroyuka Liao), dono de restaurante típico, e o reflexivo monge budista Truc Quoc (Tzi Ma), ex-guerrilheiro nortevietnamita, agora radicado nos EUA. Cada um deles, à sua maneira, lança luzes sobre as zonas sombrias de seu ser. Eles são os meios encontrados por Belber para ele, enfim, continuar sua luta pela conquista de Sue. Pode, mais uma vez, parecer simples, não é. Em “O Amor Pede Passagem” os personagens não são apenas estadunidenses entregues a uma sociedade voltada para si, situam-se num contexto mais amplo.

Sem teto surge como realidade nos EUA

Neste contexto está o chinês Al, disposto a ajudar Mike. Ele o deixa se aproximar, em princípio, pensando apenas em seu negócio. Depois é que se une a ele para ajudá-lo envolver Sue. Trata-se de uma realidade atual, a da convivência entre dois povos ainda que de campos opostos. Os EUA já não estão sós e o cinema reflete este novo quadro geopolíticoeconômico. O mesmo se dá com Quoc. Ferido numa das cruéis batalhas da Guerra do Vietnã, ele diz que perdoou a quem lhe fez mal. Desta forma, internaliza o conflito, torna-o mais próximo do espectador. De outro lado está Jerry. Ex-combatente dos EUA naquele país do sudeste asiático, ele é o retrato da derrota, com as feridas ainda por cicatrizar. Ele ouve o comentário do filho sobre o perdão concedido por Quoc e nada responde. Quer apenas esquecer uma época de triste memória para os que lá estiveram.

A comédia então se nutre de nuanças realistas, embora mantenha os recursos cômicos, os encontros e distanciamentos entre Mike e Sue, tendo o amor como centro da trama. As nesgas de realidade emergem através das tentativas de Mike se aproximar de Sue, aderindo a seu universo. A partir daí surgem, por meio dos sem tetos, as dilacerações de uma sociedade que normalmente oculta a existência de pessoas que sobrevivem na rua, sem emprego, alimento e um lugar para morar. E, sobretudo, sem esperança de um futuro melhor na outrora terra da igualdade de oportunidades. Embora as cenas não durem mais que alguns segundos são suficientes para incluir os personagens num ambiente adverso ao normal em produções hollywoodianas, salvo nos filmes independentes. São, porém, pontas que contribuem para o contexto de “O Amor Pede Passagem”, tirando-o do rameirão do filme pipoca.

Jango transita entre contradição e adesão

Às vezes Belber recorre à gozação, tendo Jango como centro dela. Ele é grosseiro, violento, mas pode também se tornar um doce de pessoa, desde que não afete seus negócios. Uma sutil critica ao ex-punk, naturalista, que aderiu à sociedade de consumo mantendo traços de seus tempos de contestação. E se vale desta época para se enriquecer em outro contexto histórico. Diretor e roteirista, Belber usa-o ainda para mostrar o quanto o mundo de Jango pode se assemelhar ao que ele refuta. Existe nele toda uma encenação, dado que vive numa mansão hollywoodiana, e é vidrado em segurança do patrimônio. Quando ele surge a primeira vez está em seu habitat, com um fuzil na mão, pronto para exterminar o pobre Mike.

O espectador confronta-se, desta maneira, com uma comédia romântica, ri das situações, enquanto a narrativa passeia por uma sociedade em franca mutação, mas que não se dá por isso. As frestas sociais, salvo pelo exagero do comportamento de Jango, não são cômicas. Ilustram tão só o mundo em que Sue vive. Ajudam, no entanto, a situar o espectador no universo dos personagens em estados vistos por ele em contextos menos críticos. À primeira vista, “O Amor Pede Passagem” pode parecer politicamente correto, pois Sue é a própria executiva moderna. De um lado capitalista até a medula, de outro tenta contornar os males que o sistema provoca. A contradição é que não há culpa, reflexão por pertencer a uma sociedade excludente. Ela, como milhares de outros incorporou este modo de participação social, o que, embora contraditório, serve para denunciar as rachaduras do sistema.

Ação de Mike libera seu pai para a vida

Por outro lado, o centro da trama é a desenfreada tentativa de Mike atrair Sue para sua vida. Este objetivo é estruturado como algo inatingível, difícil, pois ela não manifesta seu amor. Ela aceita o jogo de Mike, deixa-o livre, repreende-o às vezes, noutras o tira de seu caminho. Até chegar o momento em que os obstáculos vão sendo removidos, as aparências cedem lugar à realidade e ambos compreendem que a construção da vida a dois exige renúncia de parte a parte. E aqui não se trata de vícios, de visões opostas sobre a construção do mundo, de um perdoar o outro por algo ruim que fez – eles têm apenas de aparar arestas da vida que levam para abrir espaço para o outro se encaixar. Principalmente acomodar a visão social de Sue, motivo de seu equilíbrio emocional e de suas perspectivas de vida. Quando isto ocorre, Belber os conforma naquilo que Sue já realiza e ao qual Mike adere. Nessa reestruturação de suas vidas liberam o sisudo Jerry de suas velhas amarras, tornando-o um ser afeito ao contato com as pessoas que o rodeiam, usando o espaço do lúdico em que todos se equivalem.

Nesse vai-e-vem tão caro às comédias sobressai uma questão ainda não discutida em sua integridade, mas que surge devagar em vários filmes. O mais notável deles: “Juno”, comédia sobre a gravidez na adolescência. Este circunscreve o assunto ao meio teen, daqueles que ainda estruturam sua personalidade e procuram se situar na sociedade. “O Amor Pede Passagem” avança para outra vertente: o da mulher que se une a outro homem, grávida do ex-parceiro ou do marido. Belber, numa sequência crucial para a trama, a introduz quase como um descontraído comentário. E leva o espectador a uma pergunta: existindo amor essa gravidez pode ser simplesmente aceita? Ele não cria diálogos discutindo o tema, só apresenta a situação. Parece dizer: o que conta aqui é o amor. Não se Mike aceita ou não criar o filho do outro, ainda que em gestação. E ele mesmo, Belber, dá a resposta sem se deter muito no assunto.

São questões sociais, econômicas, amorosas que se amoldam ao novo universo da vida estadunidense, e não só a ele. Aparentemente uma “realidade mais de país de terceiromundo” que dos EUA, potência ainda dominante. Entretanto, não há como não antever seu avançar para a pauperização, dada à crise financeira de dimensões gigantescas que o assola. O que os dilemas vividos por Sue sintetizam ao optar pela assistência aos sem teto. No entanto, Belber com um filme pequeno, sem efeitos especiais mirabolantes, torna-o atraente, conta uma boa história, com personagens humanos, simpáticos, considerando o quadro sóciohistórico que seu país atravessa. Usa para isto, as ambiguidades e os zigzagues do amor, milenar sentimento, sempre útil para driblar as mazelas da vida.

“O Amor Pede Passagem” (“Management”). Comédia Romântica. EUA. 2008. 94 minutos. Roteiro/Direção: Stephen Belber. Elenco: Jennifer Aniston, Steve Zahn, Woody Harrelson, Fred Ward, James Hiroyuke Liao, Tzi Ma, Margo Martin

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