O caso das 9.896 mulheres acusadas de terem abortado
Lendo a reportagem ''Juiz manda interrogar 10 mil mulheres por abortos no MS'', relembrei palavras do senador uruguaio Enrico Rubio: ''O dilema não é pelo aborto ou contra o aborto. O dilema é pela repressão como política ou pela despenalização como polít
Publicado 09/04/2008 21:28
As versões. Em 3/4/2008, o juiz da 2ª Vara do Tribunal do Júri do Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos, decidiu qualificar, interrogar e levar a julgamento 9.896 mulheres com prontuários médicos na Clínica de Planejamento Familiar, em Campo Grande, acusadas de terem abortado! Para o promotor de Justiça Paulo César dos Passos, ''são pessoas arroladas em procedimentos abortivos considerados crimes entre 1999 e 2001, que devem ser qualificadas, interrogadas e, logicamente, se culpadas, indiciadas. A pressa é para evitar a prescrição do delito, que ocorre em oito anos''. A delegada Regina Márcia Rodrigues Mota, que conduz o caso, declarou: ''Estamos estudando a organização de uma força-tarefa para concluir os inquéritos e remetê-los à Justiça''.
As 9.896 mulheres ''caíram'' numa ''batida policial'' na clínica, existente há 20 anos no centro de Campo Grande, de propriedade da médica Neide Mota Machado, onde todos os prontuários médicos sob guarda foram apreendidos. No Brasil, o prontuário médico é de propriedade das pessoas. Os serviços de saúde são apenas guardiães dele. Qual a legalidade que dá lastro à polícia, ao Ministério Público e à Justiça de apreender prontuários médicos sem que suas donas tenham dado anuência?
À época da cinematográfica e global ''batida'', havia uma romaria para saber quem constava na lista! O ''vazamanto'' dos nomes foi um dano à imagem, um julgamento e uma punição. Os prontuários médicos de 9.896 mulheres ficaram até 25/7/2007 à disposição do público. Indagado sobre a ética de liberar prontuários médicos para saciar a curiosidade pública, o juiz substituto da 2ª Vara, Júlio Roberto Siqueira, ''afirmou tratar-se de uma situação normal a liberação para vistas ao processo, sem que isso signifique expor as pacientes. A Justiça não vê necessidade de manter o caso sob judice (em sigilo), tampouco as partes entraram com pedido para tanto. Qualquer pessoa pode ver o processo''.
Mas o juiz recuou. Mudou o status do processo – a partir de 26/7/2007, só advogados das denunciadas podem acessar os documentos -, declarando que era grande o número de pessoas, principalmente homens, interessadas em saber os nomes das clientes! É surreal que pela suposta realização de um procedimento médico 9.896 mulheres tenham suas entranhas abertas à morbidez da curiosidade pública e cheguem a um Tribunal de Júri!
Em 10/4/2007, o ''Jornal da Globo'' veiculou um diálogo com uma funcionária da clínica e a médica Neide Mota Machado, que cobrava R$ 120 pela consulta e R$ 5.000 pelo aborto. Após a arquitetada ''denúncia'', houve a ''batida'' na clínica, cuja dona teve prisão preventiva decretada. Ficou foragida por 70 dias, quando foi presa. Hoje, responde ao processo em liberdade. O resto fica por conta da sanha persecutória de fundamentalistas religiosos às milhares de corajosas mulheres que, cotidianamente, desautorizam a ilegalidade e a criminalização do aborto, via desobediência civil, sem que governo e Estado brasileiros tenham coragem de defender a plenitude de seus direitos reprodutivos. O Estado tem o dever moral de defender as acusadas, já que lhes nega um procedimento médico seguro. É imoral que cruze os braços e silencie.