''O Diabo Veste Prada'':O Poder da Mídia

David Frenkel, diretor norte-americano, trata do poder da ''mídia fashion'' e o glamour do mundo da moda

Todos querem ser iguais a nós, diz Miranda Priestly (Meryl Streep) à sua assistente Andrea Sachs (Anne Hathaway), durante uma discussão, em “O Diabo Veste Prada”, do diretor norte-americano David Frankel. Ela se refere ao glamour, à vida dos grandes privilégios, ao endeusamento daqueles que vivem hoje no mundo da moda. E que, supostamente, estão degraus acima dos que sustentam essa indústria no planeta. Suas criações ditam, principalmente, padrões de comportamento, modos de vida e um imaginário em que os imperativos da beleza superam os valores éticos e morais. Nenhum dos gêneros fica imune à sua estética, a menos que queira ser visto como alguém fora do “padrão”.



              


Daí a frase de Miranda Priestly ganhar significado, no instante em que seu poder sobre Andrea Sachs é contestado, e esta retruca: nem todos. Elas entram em choque e consolidam uma história que, aparentemente, é sobre o mundo fashion (mundo da moda), mas que na verdade é sobre o poder que a “mídia fashion” exerce sobre a indústria da moda. A começar pelos costureiros, verdadeiros criadores das roupas que poucos privilegiados compram e bilhões imitam planeta afora, por serem caras demais. Eles, os costureiros, se submetem à ditadura dessa mídia, para ver suas criações estampadas nas principais páginas dos jornais e revistas e nas matérias levadas ao ar pela TV e internet. Não é diferente o que acontece com os demais segmentos indústrias, de serviços e diversões na maioria dos países.



             


Em “O Diabo Veste Prada” este poder é centralizado na revista “Runway”, espécie de Vogue, especializada em moda, em grande escala. Nas palavras de seu design Nigel (Stanley Tucci), ela é mais do que moda, dita algo que ele não imagina, para além de seu próprio poder. Trata-se de um império, administrado compulsivamente por sua editora Miranda Priestly, espécie de Anna Wintour, editora da Vogue americana, na qual se baseou a jornalista Laura Weisberger para escrever o romance homônimo (ela mesma passou por tormento igual ao de Andrea Sachs, quando trabalhou com Wintour). Numa das cenas que ilustram o poder de Miranda, ela, assistindo a desfile exclusivo para sua revista, reage à apresentação de cada modelo, aprovando-o ou desaprovando-o com tiques nervosos. Quando ela torce o nariz, aquele vestido que o costureiro James Holt tinha como sua principal criação para do ano, logo se desmancha num fracasso e ele despacha vestido e modelo, como se tratassem de um só produto.


 


            
Personagem reflete a tirania das corporações


            


A crueldade de Miranda reflete o jogo das grandes corporações, a forma como elas exercem seu poder, para gerar grandes lucros. Para isto, ela tiraniza seus assistentes, os modelos, os costureiros e seus concorrentes. A estes impede o acesso às criações que a “Runway”  lança com exclusividade. Nada pode lhe escapar, mesmo que custe a tranqüilidade de sua vida familiar. A informação que ela vende, estampada nas páginas da revista que edita é a novidade da estação, o glamour dos modelos, uma forma de vida que os ricos sustentam, mas a que os pobres não têm acesso. Daí sua frase de que todos querem levar uma vida igual à sua. Vida que, em princípio, seduz a Andrea Sachs, mas que depois de conhecê-la de perto, hesita. E provoca, desde o início, constante choque entre ambas. O da moça que busca espaço no meio jornalístico e da tirana que procura, a todo custo, manter o seu.


 



             
Este choque entre ambas dá o tom de “O Diabo Veste Prada”. Segue o padrão hollywoodiano de que os personagens principais devem de entrar em conflito nos momentos cruciais do filme, para manter a atenção da platéia. Frankel e seus roteiristas não fogem a este clichê. Usam também a batida história da Gata Borralheira, para mostrar a transformação de Andrea Sachs e sua adesão ao sistema criado pela “mídia fashion”. No início ela se veste como uma moça comum, desacostumada aos ditames da moda. Saias largas, blusas listradas, sapatos fora da estação. Gisele Bündchen, que faz uma ponta no filme, comenta que aquelas são roupas da mãe dela, Andrea Sachs. Esse constrangimento dura pouco: ela se transforma numa elegante e sofisticada segunda assistente da tirânica Miranda Priestly, para espanto de Emily (Emily Blunt), a assistente número um.


 



             
Não bastasse esse clichê, Frankel e seus roteiristas transformam Miranda Priestly numa tirana digna dos “filmes de prisão”. Ela é cruel, possessiva, desrespeitosa, exploradora ao extremo. Uma vilã que não se via desde que Bette Davis tiranizou sua irmã “Joan Crawford”, em “O que Aconteceu a Baby Jane”. Chega a ser repulsiva em sua insistência de jogar sobre a mesa seus casacos para que a segunda assistente, Andrea Sachs, os recolha e guarde. Se nos “filmes de prisão”, espera-se que “mocinho” acabe com o brutal chefe da penitenciária, o mesmo acontece com Andrea Sachs em relação a Miranda Priestly. Isto de certa maneira retira o impacto do filme, pois o contexto aqui não é o de vingança pura e simples, mas o da exploração do trabalhador levada a extremo. Chega a ser desumano, o que Miranda exige de suas assistentes. Elas não existem enquanto seres humanos, trabalhadores que merecem respeito, sim robôs que devem se mover com a rapidez por ela exigida.


 


          
 “Mídia fashion” impõe padrões de beleza
           
           


O que se quer aqui é perfeição, precisão, competência às custas da tiranização das trabalhadoras. Elas, a exemplo de Emily, vão se adaptando a ponto de chegar a sonhar com uma viagem a Paris para assistir o lançamento das criações da estação. Para tanto, tiraniza a segunda assistente e os demais funcionários, inclusive as modelos que têm de se submeter ao padrão estabelecido: serem magérrimas, estarem disponíveis, servirem de cabides e depois de intérpretes para apresentar as criações. Sobre elas se assentam o glamour e a projeção de bilhões de jovens mundo afora. Sua vida útil é curta, não mais que 15 anos, dependendo da idade que começam a desfilar. Logo desaparecem, para ceder lugar a outras tantas, sonhadoras com o “mundo fashion”.


 



           
No capitalismo, cabe à “mídia fashion” eternizar esse mundo, impondo padrões estéticos que serão seguidos, a partir do centro irradiador: Nova York, Londres, Paris, Milão.Andrea Sachs, cujo sonho é ser jornalista, compreende este mundo, para dizer a Miranda Priestly que discorda. Sua discordância provém do meio em que vive. De seu grupo de amigos fazem parte um desocupado, uma artista plástica negra inconformista, Lilly (Tracie Thoms), e o namorado Nate (Adrian Grenier), futuro chef de cozinha, que são o contraponto ao mundo da alta costura e da “mídia fashion”. Eles não se vestem de acordo com a moda e tampouco sonham em entrar para este meio. Preferem ser out-siders, marginais, a ter de seguir dietas, serem incomodados à mesa de bar e restaurantes por telefonemas das Mirandas e não terem horários rigorosos. É entre esses dois mundos que Andrea Sachs pende há todo momento.


 



           
O choque entre esses dois mundos é que torna “O Diabo Veste Prada” assistível. Andrea Sachs é uma moça comum, com pensamentos e idéias das garotas de sua idade. Sua transformação numa fera se dá sob as exigências de Miranda. Ela se mostra capaz de tiranizar, de manipular, de perder a ética e o elo entre seu mundo e o de sua chefe. Salva-a o grupo, com suas observações sob a superficialidade do “mundo fashion” e a necessidade de ela retomar seu sonho. Ao chegar a este ponto, ela contesta a máxima do capitalismo de que, para se chegar ao topo, é preciso abandonar sonhos e deixar trás de si um rastro de inimigos e cadáveres. Para o público jovem que assiste “O Diabo Veste Prada” é uma boa lição. Há sempre um mundo onde é possível manter a ética, não se submeter às imposições dos padrões de beleza, nem buscar o sucesso a qualquer preço, para construir uma outra forma de vida.



           
Não é pouco para um filme que nada aprofunda, nem mesmo vale como referência de um bom cinema. Só arranha os problemas e os deixa no ar. De qualquer forma, os problemas contemporâneos da mídia estão todos lá. Nas mãos de um bom diretor, poderiam ter se transformado numa potente denúncia não só da “mídia fashion”, mas de toda a mídia, que se torna cada vez mais no poder real, exercido em nome do hipercapitalismo. A festa dada por Miranda Priestly em Paris ilustra bem seu poder para arregimentar representantes dos mais variados segmentos da grande burguesia internacional. Sem dúvida, o diabo se veste de criações que simbolizam o capital, sem maquiagem alguma.


 


 


“O Diabo Veste Prada” (The Devil wears Prada). Produção EUA, 2006, 109 minutos. Roteiro: Aline Brosh Mckenna, Don Roos. Baseado no livro homônimo da jornalista Laura Weisberg. Diretor: David Frankel.
Elenco: Meryl Streep, Anne Hathaway, Emily Blunt, Stanley Tucci.

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