“O Discurso do Rei”: Ecos da monarquia decadente
Diretor inglês, Tom Hooper, tenta resgatar a autoridade da monarquia na Grã-Bretanha em plena crise do neoliberalismo e queda de Wall Street
Publicado 24/02/2011 19:02
O filme “O Discurso Rei”, do diretor inglês Tom Hooper, traz à discussão o velho tema da obra arte como reflexo da realidade. Não o real em si, mas de como ela pode servir aos objetivos políticos. Mesmo que discuta o caso particular de um monarca com graves problemas de gagueira, autoestima e despreparo para o trono. Não há como deixar de situá-lo no contexto de outros dois filmes que também trataram da monarquia britânica recentemente. Stephen Frears, em “A Rainha”, mostra embate entre o então primeiro-ministro Tony Blair e a Rainha Elizabeth II, cheio de simpatias para com a monarca, e Jean-Marc Vallée faz o mesmo em “A Jovem Rainha Vitória”, mostrando a colonialista como responsável pela ampliação do Império Britânico.
Mas o que esses filmes têm em comum? O de trazer a monarquia à discussão no momento de crise do neoliberalismo, queda financeira de Wall Street e resistência às ocupações do Iraque e Afeganistão. E principalmente a insegurança social, econômica e política gerada pelos governos britânicos. Do trabalhista Tony Blair ao conservador David Cameron este quadro se manteve inalterado. E as abordagens dos citados filmes põem a monarquia como a única instituição estável na Grã-Bretanha. Dá para perceber isto no questionamento que George VI (Colin Firth) se impõe diante do “fonoaudiólogo” Leonel Logue (Geoffrey Rush), num instante de cruel consciência:
“Onde está meu poder? Posso criar um governo? Posso aplicar um imposto ou declarar uma guerra? Não. Todavia eu sou a sede de toda a autoridade. Por quê?”. Melhor do que isto impossível. Então a obra de arte, refletindo a superestrutura capitalista, não deixa de ser um produto sujeito às vicissitudes políticas e mercadológicas. Pois embute em si mensagens e discussões que não podem ser negligenciadas. É preciso escapar às armadilhas da estética, da encenação, da complexidade do tema e da mística da monarquia, tão presentes nos contos de fadas, e não se deslumbrar com o glamour de reis, rainhas e princesas.
Filmes recentes, como “A Outra”, de Justin Chadwick, sobre a disputa entre Ana e Maria Bolena por Henry Tudor, e “Elizabeth”, de Shekhar Kapur, sobre os infortúnios desta monarca, buscaram outros enfoques, priorizando a tragédia. No entanto, “O Discurso do Rei” reafirma a Monarquia como centro do equilíbrio de poder na Grã-Bretanha. Embora o então Duque de York (1895/1952), futuro Rei George VI (1936/1952), numa franca discussão com o pai, o Rei George V (Michel Gambon), a classifique a realeza de outra forma: ”Não somos uma família, somos uma empresa”.
Simpatias nazistas
são disfarçadas
É uma empresa com múltiplos interesses. Como os envolvimentos do Príncipe David (Guy Pierce) e de sua amante plebéia, a estadunidense Wallis Simpson (Eve Best), com o nazismo. Ele (1894/1972), que sucedeu ao pai como Edward VIII e renunciou ao trono para se casar com Wallis, considerava Hitler como salvador da Europa. Numa discussão com o irmão George, que lhe cobra uma ação contra as marchas comunistas na Europa, ele diz que Hitler iria cuidar do caso. E o próprio irmão, já George VI, ao assistir um discurso de Hitler num filmete, diz que Hitler estava se fazendo entender em seu discurso. São tendências que Hooper e Seidler tentam disfarçar, mas são parte da história e não há como negá-las.
Mas além deste contexto, o filme de Hooper e de seu roteirista David Seidler é um tout force, embate, entre o Rei George VI e o plebeu australiano, Leonel Logue. Remete ao confronto entre o amante da mulher (Michael Caine) e o marido desta (Laurence Oliver), em “Jogo Mortal”, de Joseph L. Mankiewicz. Cada um querendo se impor ao outro. Longue em sua tarefa de curar George da gagueira, resultado da repressão e humilhação sofrida na infância, dita suas condições, inclusive a de se tratarem como iguais: Bertie, de Albert, primeiro nome de George VI, e Logue. A habilidade de Hooper em retirar de Rush e Firth toda uma gama de reações e conflitos interiores é o que de melhor tem o filme.
O ápice do confronto entre eles é a sequência preparatória para a coroação de Bertie como George VI, em 1936. Logue desmistifica toda a simbolização do trono como fonte de poder, para irritação de Bertie, e depois conquista sua aceitação. Daí surge a encenação teatral que o filme muitas vezes tem, cuidando Hooper de disfarçá-la com ágil montagem e os passeios de Bertie e Logue pelo parque sob o fog, névoa, com bela iluminação de fundo, para pontuar os conflitos entre ambos.
É cinema clássico. O que vale mesmo é a discussão que enseja sobre a obra de arte e seus conteúdos político-ideológicos, inseridos no contexto da atual crise do sistema capitalista. Mas escorrega por incensar o bolorento e ultrapassado sistema monárquico britânico, e não só ele, com abordagem conservadora, ainda que Logue, o plebeu, predomine.
“O Discurso do Rei”. (“The King Speech”). Drama. 2010. Reino-Unido/Austrália. 118 minutos. Roteiro: David Seidler. Direção: Tom Hooper. Elenco: Colin Firth, Geoffrey Rush, Helena Bonham Carter, Guy Pierce.
– Candidato ao Oscar 2010: Filme, ator, ator e atriz coadjuvante, diretor, roteiro original, fotografia, edição, direção de arte, figurino, trilha sonora, mixagem de som.