“O Pecado de Hadewijch”
Ninguém está isento
Publicado 10/11/2010 16:50
Diretor francês Bruno Dumont equipara católicos aos muçulmanos em filme sobre a capacidade de o fiel sacrificar a si e ao outro numa ação política
Não há linha divisória entre fé e ação política, nos diz o diretor francês Bruno Dumont em seu “Pecado de Hadewijch”. Ambos se fundem para que sejam atingidos seus fins. Basta que o fiel se entregue a Deus e acredite que seu ato atende aos objetivos divinos, que naquele momento nele se configura. Pouco interessa a classe dele, fiel, o que importa é que abandonou tudo, vida pessoal, familiar, social para, por Ele, sacrificar-se. E, assim, “passar desta vida para a outra, onde receberá como recompensa a vida eterna”.
O que fica para trás pode ser um monte de escombros e corpos estraçalhados. Nada disso, porém, importa. Um ciclo foi cumprido, outro virá, até o mal se extinguir. E não se fala em mártir, apenas no atendimento ao preceito religioso do sacrifício. Inquietante sem dúvida, mas Dumont já se lançara à polêmica com seu “A Vida de Jesus”. E de forma mais contundente que Scorsese o fizera em “A Última Tentação de Cristo”.
Agora funde cristianismo e islamismo para tentar lançar luz sobre as ações que inquietam o Ocidente. Mas, ao contrário de Hany Abu-Assad, em “Paradise Now”, que centra a ação em dois militantes palestinos, ele usa uma jovem estudante de teologia para mostrar que uma católica também pode usar sua fé para cometer os mesmos atos. Não há diferença, portanto, entre uma religião e outra, o que conta para ele, Dumont, é a forma como a jovem burguesa Céline (Julie Sokolowski) se entrega a Deus.
Ela, filha de um ministro francês, podia ser uma noviça comum, dessas que seguem os preceitos e rituais católicos, mas sua devoção é tal que a própria madre superiora (Brigitte Mayeux-Clerget) acha seu comportamento anormal. Numa cena esclarecedora, esta comenta com outra freira que “Céline perdeu o amor próprio”. A jovem, que dá a si o nome de Hadewijch, místico que viveu em Brabant, norte da França, no século XIII, se entrega a penitências árduas, desejando alçar-se aos braços de Deus.
Numa mistura de fé, paixão e comunhão doentia, Céline é incapaz de sentir a realidade circundante, que Dumont sintetiza na caótica obra do convento, onde ela vive. Como as paredes da velha construção, ela tenta sobrepor camadas, mas estas já não se renovam. Até que ela, por instrução da madre superiora, é mandada de volta para casa, para que retome o convívio social. Assim, a madre esperava que ela sentisse a religião a partir do convívio com a sociedade, de forma humana, sadia.
Dumont não quer
estigmatizar muçulmanos
Dumont não configura a aflição de Céline em sequências subjetivas, intimistas, de dor, mostrando sua face em close (Carl T.Dreyer,“A Paixão de Joana D´Arc”). Prefere planos abertos, caminhadas, que têm muito de tormento. Tampouco a lança em conflitos freudianos (Jacques Rivette,“A Religiosa) ou político-ideológicos (Pier Paolo Passolini, “O Evangelho Segundo São Mateus”,). Beira o onírico com Céline clamando pela comunhão com Deus, como na sequência da igreja, em que se penitencia perante Cristo. É quando ela se prepara para o que virá a seguir, quebrando a visão de que só nos muçulmanos fé e ação política se confundem para garantir a eternidade.
Isso conta muito, porque Céline é uma garota comum, salvo por sua devoção religiosa. Seu encontro com Yassine (Yassine Salime), jovem árabe, irá conduzi-la por caminhos inimagináveis. Yassine, ao contrário do irmão Nassir (Karl Sarafidis), professor de religião islâmica, quer apenas gozar a vida, às vezes perigosamente. Ela, não, ainda que no show da banda de rock se agite comedidamente, sempre foge ao contato amoroso. Sua única paixão é Deus, a ele se entrega sem questionamento algum.
É Nassir quem, na perspectiva islâmica, irá entendê-la melhor. Ele descobre nela algo que Yassine não tem: a possibilidade de sacrificar-se. Os diálogos entre ambos são elucidativos. Neles não há nada de “radical”, “fundamentalista”, estas são estigmatizações, cicatrizes que o sistema judaico/ocidental pregou indiscriminadamente em árabes, africanos ou asiáticos islamitas. No entanto, o que conta para Nassir é a percepção que ela tem da comunhão com Deus e até que ponto pode usá-la na luta política de sua facção.
A clareza com que Dumont faz o espectador entender estas contradições é de arrepiar. Principalmente quando Céline anda de um lado ao outro pelo convento, atravessa o campo, unindo sua vida ao do místico Hadewijch. É como se ele, Dumont, dissesse: nada há de novo, é apenas uma atualização dos confrontos seculares, lembranças das Cruzadas, do misticismo, da Inquisição. No entanto, é muito mais profundo. E por que não dizer: assustador. Porque não há razão. O fim em si é chegar a Deus pelo sacrifício.
Para Dumont ela, Céline, católica, não está livre de praticar o mesmo ato que qualquer outro fiel cometeria, independente de sua religião. Porém, ele, Dumont, pende para a suposta racionalidade da madre superiora, que a envia para o convívio social, e sutilmente critica a fusão de fé e política na ação de Nassir. É um deslize crucial num filme que beira a perfeição.
“O Pecado de Hadewijch”. (“Hadewijch’). Drama. França. 2009.120 minutos. Roteiro/Direção: Bruno Dumont. Elenco: Julie Sokolowski, Karl Sarafidis, Yassine Salime, Brigitte Mayeux-Cleget.