O que muda com Jairzinho paz e amor

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Estamos há duas semanas sem escutar disparates, ameaças ou sandices do ocupante do mais elevado cargo da República. Depois de meses de beligerância com o Judiciário e o Legislativo, provavelmente por livre e espontânea pressão dos militares, Bolsonaro se esforça para ficar de boca fechada, evitando conflitos e afirmando que respeita os demais poderes. A versão Jairzinho paz e amor surge imediatamente após a prisão de Queiroz e diante da iminente emersão das falcatruas que envolvem toda sua família, em especial as relações com as milícias.

É natural que se espere que tal postura seja passageira, visto que o enfrentamento é da natureza e da história de vida do Capitão, e a pergunta mais corrente é: até quando? Mas vamos admitir a hipótese de que esta seja uma mudança real de rumo e uma nova forma de conduta. Que mudanças esta nova conduta representaria? Estariam afastadas as ameaças à democracia? Isto melhoraria o enfrentamento à crise sanitária e econômica? Finalmente Bolsonaro começaria a governar? Teríamos, ainda que em uma linha conservadora, um mínimo de governança?

Uma redução nos tensionamentos reduz os riscos imediatos de uma ruptura institucional pendente ao autoritarismo. O armistício informalmente estabelecido, no entanto, somente representaria uma solução positiva caso o apaziguamento dos ânimos representasse um redirecionamento do governo no sentido de unificar o país em torno de um plano emergencial de enfrentamento à atual crise. E, diga-se, não se trata de qualquer crise.

Do ponto de vista sanitário, em pouco mais de três meses já acumulamos o dobro do número de óbitos causados pela Gripe Espanhola e perdemos mais vidas do que os Estados Unidos em quase 20 anos de guerra na Ásia nas décadas de 50 e 60. Todos os indicadores apontam que esses números devem ainda dobrar e talvez até triplicar, com a pandemia se estendendo por meses caso não haja uma ação coordenada e unificada entre governos federal, estaduais e municipais.

Quanto à economia, já é consenso no meio econômico, mesmo para aqueles que fazem as previsões mais otimistas, que estamos diante da maior retração da economia dos últimos 120 anos. Fala-se em 120 anos, pois não temos parâmetros anteriores. O PIB somente começou a ser medido de forma confiável em 1901. De forma que não é exagero afirmar que é a maior crise de nossa história. Soma-se à retração, os seus efeitos colaterais como desemprego, desocupação, desabastecimento e inflação, bem como sua resultante, que inevitavelmente será uma profunda crise social. Acrescente-se aqui que vivemos o maior isolamento internacional, que tende a se aprofundar.

Trata-se, portanto, de uma perspectiva de caos social e de terra arrasada, só comparável ao desastre de uma guerra. A situação é de tal gravidade, que já passou do tempo de todas as forças sociais e políticas se unirem em torno de um plano de enfrentamento da crise e de salvação nacional. E aí cabe perguntar: a nova face de Jairzinho paz e amor levará o governo a abandonar a posição negacionista e se colocar na liderança da articulação de um plano de tal magnitude?

De qualquer forma, afirmar que a nova postura de Bolsonaro é passageira porque o conflito é da sua natureza, é reducionismo. Temos como governante um indivíduo medíocre e militar fracassado que, com um discurso de falso moralismo e de defesa da violência policial, encontrou uma fatia do eleitorado carioca para lhe propiciar, e aos seus filhos, mandatos parlamentares. Por três décadas, ele e seus familiares sobreviveram e melhoraram de vida às custas dos salários parlamentares e de esquemas de rachadinhas, contratação de funcionários fantasmas e manipulação de verbas de gabinete. Em síntese, utilizaram-se do aparelhamento dos mandatos legislativos para pequenas falcatruas. Em 28 anos de mandato, Bolsonaro não apresentou ou relatou um único projeto com um mínimo de relevância, não presidiu ou secretariou nenhuma comissão e sequer a Constituição estudou. A agressividade é consequência de sua mediocridade, pois é incapaz de adotar qualquer outra postura. Pode-se esperar que, num passe de mágica, um indivíduo de tão baixa estatura se transforme em um estadista, capaz de liderar um plano de salvação nacional?

Tal mediocridade era conhecida por todos, inclusive por aqueles que o apoiaram. Acreditavam, no entanto, que tamanha insignificância seria exatamente o elemento que possibilitaria tutelá-lo no poder. Dessa forma, constituiu-se um governo composto por: uma ala ideológica (olavistas e evangélicos oportunistas e fundamentalistas), militares e representantes da economia neoliberal. A estas, agrega-se agora o Centrão. Encurralado pelas denúncias-crime contra seus filhos em decorrência dos esquemas de gabinete e de manifestações antidemocráticas, bem como do cerco judicial aos seus apoiadores por manifestações contra os demais poderes, Bolsonaro passa a adotar a postura paz e amor, o que reaviva a teoria de tutela. Nestas duas últimas semanas, os sinais são de que o núcleo militar assumiu o comando das ações.

Porém, se o reposicionamento de Bolsonaro lhe dá uma sobrevida e apazigua um pouco os conflitos do governo com o Judiciário e o Legislativo, acentua os conflitos e disputas internas dos 4 núcleos, sendo que os três originais apresentam contradições insolúveis entre si. De imediato, a consolidação da nova posição governamental e a afirmação do núcleo militar demanda o afastamento do núcleo ideológico do governo, em especial de Ernesto Araújo e Ricardo Salles, o que, na prática, representa uma declaração de guerra interna entre esses dois grupos. Em que pese Bolsonaro ter sido um dia militar, fracassou na sua carreira e sua posição e de seus filhos está alinhada com o grupo ideológico. A evolução do quadro atual representaria, em um futuro próximo, no afastamento do próprio ou no afastamento do núcleo militar do governo.

Ainda que os três agrupamentos da composição inicial possuam como traço comum o fato de suas convicções serem conservadoras, estão longe de possuir objetivos comuns. Os ideológicos querem a imposição à sociedade de seu amontoado de desconexos chavões moralistas, o que só seria possível por meio de um governo autoritário e , o que é é absolutamente incompatível com a ideia de livre mercado e estado mínimo do núcleo econômico. Por sua vez, o ideal de livre mercado e estado mínimo do núcleo econômico é incompatível com o suposto nacionalismo dos militares que, no fundo, sonham com a retomada do modelo do regime de 64, com forte aplicação de recursos públicos em infraestrutura, abarrotando os cofres das Forças Armadas e assegurando altos cargos administrativos aos oficiais de pijama. Uma pequena amostra do antagonismo entre estes dois segmentos foi o mal-estar provocado pelo power point do Braga Neto, apresentado em coletiva no início da pandemia. Por seu turno, ainda que o projeto dos militares exija um estado autoritário, é incompatível com um governo autocrático e fundamentalista.

É importante esclarecermos que quando nos referimos a núcleo militar, não estamos tratando das Forças Armadas e sim dos militares que abraçaram o governo Bolsonaro. Os oficiais da ativa, nestas duas últimas semanas, diante desses conflitos, têm emitido fortes sinais de que querem descolar a imagem das FAs dos militares da reserva que estão no governo.

Portanto, independentemente do perfil beligerante do Bolsonaro, é um governo permeado por conflitos internos que não tem e nunca teve programa. Imaginar que um conglomerado com estas características seja capaz de conduzir o país na travessia da enorme tragédia que se avizinha é uma perigosa ilusão. O silêncio de Bolsonaro estanca a crise com os demais poderes, mas não estanca a crise de governabilidade. Pelo contrário, aprofunda-a nos subterrâneos do Planalto. Não podemos nos iludir com a aparente calmaria, nem baixar a guarda, pois o tsunami está a caminho. A perspectiva de construção de uma alternativa pela via de uma frente ampla não pode se perder, mais que isso, ela se faz urgente.

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