Os EUA e o desaforo militar de Jobim

O episódio da contestação ao conteúdo do 3º PNDH (Programa Nacional dos Direitos Humanos) tem suas raízes profundas. Há nele um recado no qual os comandantes militares são meros instrumentos de uma ordem há muito consagrada.

Da filiação original ao exército colonial português à reverente subserviência ao moderno intervencionismo dos EUA, o Exército brasileiro afirmou uma relação simbiótica com o poder político — do qual se julga fiscal e guardião —, com o imperialismo e com o sistema da grande propriedade territorial, o velho e truculento latifúndio.

Daí a insuportável e malcheirosa ocorrência deste prolongado funeral do regime militar, que já se estende por um quarto de século desde o seu epílogo oficial, em 1985.
E que, não resolvido, poderá enterrar o próprio Brasil.

Este pensamento faz o contraponto mais contraditório às suas raízes patrióticas — da Batalha de Guararapes à campanha da Força Expedicionária Brasileira (FEB) na II Grande Guerra. E explica também seu desaforado desacato às determinações do presidente da República —constitucional comandante supremo das Forças Armadas.

O exame da História do Exército Brasileiro (HEB) é pródigo em elementos úteis à compreensão do posicionamento dos comandantes militares—pateticamente secundados pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, que os acompanhou na recente “ameaça de renúncia”.

Armado árbitro da democracia

A HEB foi publicada pela primeira vez em 1972, durante o governo Médici, que ficou conhecido como período emblemático dos “anos de chumbo”. Antes disso não havia nenhuma obra com esse sentido historiográfico produzida no meio castrense.

O Exército publicou uma segunda versão em 1998, sempre sem autoria definida, com o patrocínio da Organização Odebrecht, quando há 13 anos os militares já não controlavam o Poder Executivo.

No livro, o Exército se interpreta como elo fundamental de união entre o colonizador das caravelas, os povos indígenas nativos e os africanos. Nesse rumo, entrelaça as origens da nacionalidade brasileira e do próprio Exército no momento de sua fundação, considerando indissociáveis as duas histórias. Essa união na defesa do território daria origem ao “povo em armas”, com início oficializado em Guararapes.

Assim, ao expor a concepção de seu papel na sociedade, o Exército se estabelece como “guardião da nacionalidade”. É o nascedouro do espírito chauvinista que o levou a se considerar acima da Constituição e a se imiscuir na vida do País como se fosse o soberano magistrado capaz de interromper, a seu juízo, o processo democrático.

Em busca das “Novas Ameaças”

A cientista social Amanda Pinheiro Mancuso, que examinou numa tese de mestrado a relação castrense com a FEB e com a Guerrilha do Araguaia, observou que “esse caráter civilizador do Exército como uma espécie de ‘professor da nação’ era uma visão típica da época da ditadura militar que foi transmitida na sua produção historiográfica”.
E acrescentou que, em 1998, a publicação se deu nas circunstâncias de uma crise de identidade, em busca de um conflito sucedâneo aos padrões da Guerra Fria: “Neste quadro, desenvolvia-se, à época, um panorama de discussão sobre ‘Novas Ameaças’, que tinha como componente principal a pressão exercida pelos EUA sobre os países da América Latina no sentido de um envolvimento mais efetivo de suas Forças Armadas em operações de combate aos chamados ilícitos transnacionais, com destaque para o problema do narcotráfico” .

União do ”povo em armas” contra o invasor

Na versão castrense, até a nossa efetiva independência, “o exército brasileiro será esse entremeado de brasileiros e portugueses, os últimos, ensinando aos primeiros a difícil arte das armas, e estes aos lusitanos, dando demonstrações de amor pela terra dadivosa, talhada pela Providência para crisol de raças e dos ideais democráticos”.

Nesta versão, o Exército incorpora a plena influência da estrutura militar instalada pelo colonizador português, na qual foram relevantes as invasões estrangeiras no litoral brasileiro. A consciência do espaço territorial e da importância de sua integração e unidade decorreu de uma pré-condição: lutar primeiro contra o invasor estrangeiro antes de lidar com as questões internas.

Assim, a construção do Exército se deu pela união “patriótica” com o “povo em armas” — inadmitida nas circunstâncias da resistência à sua indevida intervenção na vida do País com o golpe militar de 1964.

Berço nas capitanias

Entretanto, esse fator positivo foi neutralizado, num aspecto de fundo, quanto ao advento do sistema de capitanias — que ainda hoje remanesce o bastião latifundiário no País.
Ao tempo que valorizava a organização política colonial atrelada à sua organização militar como elemento de defesa do território conquistado, o sistema de capitanias, instituído 32 anos após o descobrimento, é descrito como a primeira organização militar terrestre.

As capitanias constituíam porções do território doadas em usufruto aos “capazes” de povoar, explorar e defender as terras com recursos próprios, “e os proveitos eram divididos com a fazenda real como meio de solucionar os problemas de invasões e pilhagens”.

Nessa “divisão de responsabilidades”, as autoridades coloniais forneciam armas, munições e oficiais, aos quais cabia armar, instruir e comandar as forças que organizassem, cabendo aos donatários empregá-las para a manutenção da ordem e para a defesa. É o berço do Exército.
Nasce aí, nas raízes mais remotas desta umbilical gestação, o contemporâneo, visceral e congênito ódio compulsivo ao MST — que, mais de cinco séculos depois, seria em seu imaginário o fulcro da rebeldia a ameaçar o leito nascituro: o velho sistema sesmarial remanescente.

Vence a Escola das Américas

Modernamente, no desfecho da polêmica que envolveu o 3º PNDH (Programa Nacional dos Direitos Humanos), saíram vitoriosos o regime militar e seus torturadores treinados na Escola das Américas — e oficialmente qualificados pela impunidade: com o apoio do ministro da Defesa, Nelson Jobim, lograram apagar de um documento oficial a referência à “repressão política” ocorrida naquele período, novamente anistiando-se ao arrepio da lei.

Saem derrotadas, pagando um elevado preço consentido, as Forças Armadas, agora forçadas a assumir perante a sociedade brasileira, a ampla, geral e irrestrita solidariedade dos seus comandantes aos violadores de todos os códigos e convenções castrenses e internacionais, além da ruptura da ordem constitucional que qualifica como seu comandante supremo o presidente da República.

Admitem agora publicamente que o banditismo promovido pela ditadura, que ainda hoje mantém 140 “desaparecidos”, não foi um episódio isolado: até que o nosso povo determine que seus filhos militares mudem o rumo da prosa, torna-se o vandalismo traço essencial do seu perfil e de toda a sua história.

Medo dos filhos e do espelho

Tudo isso em contraponto à tendência de sua fração patriótica que empolgou a FEB (Força Expedicionária Brasileira) como força aliada na Campanha da Itália, em 1944-45; além disso, valorizando os genocídios promovidos na Guerra do Paraguai, em Canudos, no Caldeirão, no Contestado e em todos os episódios de participação militar pródiga em massacres, torturas, sevícias e degolas.

Entre todas as questões que pipocaram neste início de 2010, algumas sangraram Brasil afora. Uma delas veio de Hildegard Angel, irmã do jovem Stuart Angel, trucidado pelo CISA (Centro de Informações da Aeronáutica) na Base Aérea do Galeão: “Que medo é esse de se revelar a Verdade? Medo de não poder mais olhar para seus próprios filhos? Ou medo de não poder mais se olhar no espelho?”

Tal justa contundência apenas verifica a determinação da elite brasileira — de seus latifundiários, grandes empresários que financiaram o aparelho repressivo e militares — de manter a ferro e a fogo em nossa tradição política a ocultação da verdade, bem mais que a prática da tortura e da degola de prisioneiros indefesos.

Ocultação da vergonha

É o rito (ausente de seus manuais) que consiste em apagar suas ações vergonhosas até o extremo de inundá-las, como aconteceu com as terras de Canudos, onde hoje está o açude Cocorobó; como quase aconteceu na região da Guerrilha do Araguaia, onde se construiria uma represa da Usina Santa Isabel, destinada à produção de minérios para exportação. Numa torrencial onda de relatos, tratou-se de reunir cadáveres de prisioneiros executados e dispersos na mata e, segundo o coronel Pedro Correia Cabral, que participou da macabra operação pilotando um helicóptero, levá-los à incineração com pneus e gasolina na Serra das Andorinhas após o encerramento oficial da mesma Guerrilha. Ou, ainda, no estilo da denúncia contida no livro de Taís Morais , um agente secreto descreve, minucioso, como se eclipsava com as vítimas das chacinas, retalhando-as nas juntas e pendurando-as em ganchos de açougue até o completo sumiço — a exemplo de David Capistrano.

Proteção dos verdugos

Nesta tradição, um dos ícones da ocultação histórica da barbárie foi o pioneiro Rui Barbosa: pediu que fossem queimados os arquivos da escravidão. A truculência antipopular promovida nos anos 1920 pelo governo de Arthur Bernardes contra o povo e seus filhos militares de berço tenentista e revolucionário — infinitamente mais dignos que tais padrinhos de bestas humanas — foi igualmente obscurecida . Os arquivos da ditadura estadonovista (1937-1945) não emplacaram a longevidade do nazista tupiniquim Felinto Muller — o mesmo que remeteu Olga Benário às cremalheiras de Hitler. E lembremos que, após essa ditadura, até um deputado e general chamado Euclydes Figueiredo, da UDN antivarguista empenhada em se vingar dos maus tratos desse passado, propôs a criação na Constituinte de 1946 de uma frustrada Comissão que julgaria os seus atos, inclusive a situação dos presos políticos de 1934 a 1945.
Na ordem contemporânea, as nossas forças armadas contrariam a experiência de Portugal, Espanha, Grécia, Chile, Argentina ou Uruguai, onde os militares abandonaram à própria sorte os verdugos das ditaduras extintas.

Na vigência da ilegalidade — e apenas de 1964 e 1979 — milhares de civis foram condenados nos tribunais militares pelo crime de se opor ao arbítrio. Mas, após cinco eleições diretas, sete presidentes empossados e 25 anos após o fim do golpe de 1964, ratificando a vigência da ditadura, o velho arcabouço golpista veda a abertura dos arquivos secretos e esteriliza os crimes de uma horda que ceifou inúmeras vidas nos porões de um regime sanguinário.

Velha campana golpista

Mas o especial perigo da insurgência militar reside na sua reconhecida relação com a agressiva política belicista dos EUA, que fortalece as posições dos setores mais entreguistas das Forças Armadas — animados pelos rígidos dogmas da Doutrina da Segurança Nacional, berço intocado das ameaças antidemocráticas.

Barack Obama, sem objeções de fundo, atua submisso ao aparelho conservador dos falcões, que dá rumo à ofensiva da direita no continente tratando de instalar bases militares na Colômbia, apoiando o golpe hondurenho, as investidas internas contra Evo Morales na Bolívia, Fernando Lugo no Paraguai, Cristina Kirchner na Argentina; alimentando o rolo compressor biliardário nas eleições chilenas.

É essa instabilidade que anima o seleto clube dos descendentes da Escola das Américas, onde se abrigam especialistas (e seus solidários comandantes) nada indignados com a atual ofensiva.

Arrebentar os grilhões

Entretanto, não obstante os novos arreganhos da velha ordem, emergimos do episódio mais convictos de que o atual desafio, que enquadra o tema Direitos Humanos, requer, sem ilusões ou contemplações, a atualização da luta contra a ditadura.

E sob a convicção de que uma política de Estado libertária passa hoje pela determinação política do Presidente mais popular da História — o único que não brotou do berço da elite mais corrosiva do planeta. Ou ele, ainda na vigência do atual mandato, encerra de modo esclarecedor esse capítulo das trevas, com o amplo apoio da população, da sociedade organizada e de seus militares dignos — que nada tem a perder além dos grilhões que os acorrentam a um passado sujo e pervertido —, ou sua vigência se perpetuará como uma permanente ameaça aos filhos e netos do Brasil.

Boa parte sobrevivente da nossa geração gastou sua mocidade enfrentando — alguns tentando compreender — o terror emergente das casernas e das cavernas. Agora se vê na contingência de confrontá-lo para que nem os que tombaram possam se envergonhar do Brasil.

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