“Paris”: vidas cruzadas

Diretor francês Cédrick Klapisch traça um perfil da cidade através da geografia, dos centros históricos e dos personagens que a simbolizam na modernidade

Quem se aventura a ir ao cinema hoje à procura de algo novo verá que o novo é um velho que passou pelas mãos de vários cirurgiões plásticos. E acabou cheio de intervenções que pouco lembra o velho de tão reciclado. Está sempre parecendo com algo já visto, mas não está no mesmo contexto do antigo, pois a forma e a abordagem mudaram de tal forma que se tem a ideia de que se está diante do novo. Mas hoje com a moda das reciclagens travestidas de leituras e roupagens termina-se tendo a impressão de que as intervenções suavizaram a idéia de que é impossível contar uma história sem escapar à influência de certas matrizes. Em “Paris”, do francês Cédric Klapisch, tem-se uma costura de diversas estéticas e conteúdos, indo de Hitchcoock a Altman, passando pelo otimismo emanado dos filmes de Truffaut e as declarações de amor de Allen a sua Manhattan. Mas com uma leveza, certo frescor e uma clareza que o tornam uma boa ida ao cinema.


 



A reciclagem ou leitura, para ser menos cáustico, se dá quando Klapisch enovela, à moda de Altman (“Shorts Cuts”, “Nashville”), várias histórias, entrelaçando-as de modo a trazer os dilemas dos personagens para o primeiro plano. Isto se dá com a assistente social Elise (Julliete Binoche), que circula por vários espaços, indo da repartição pública onde trabalha ao apartamento do irmão doente Pierre (Roman Duris), até chegar ao atormentado feirante (Albert Dupontel). Elise é apenas uma das pontas dos entrechos que envolvem ainda o professor de história Roland Vernuil (Fabrice Lucchini), que se apaixona por sua bela aluna (Melanie Laurent) e enfrenta os problemas mal resolvidos de infância e juventude com o irmão arquiteto Philippe Vernuil (François Cluzet). Klapisch debruça-se sobre os dilemas de cada um deles, tornando-os exequíveis, seres de carne e osso, e os trás para junto do espectador suas experiências, desencontros e impasses.


 


 



Bailarino dialoga com a cidade de sua janela


 


 


Se em “Nashville”, Altman faz seus personagens circularem por esta cidade-símbolo da música country estadunidense, Klapisch torna Paris mais do que espaço geográfico. Seus personagens são a razão de ser da cidade e esta a deles. Uma razão de viver entre alegrias, frustrações e dores, com suas praças, torres e rios. Cada um deles respira seus ambientes como se a eles fossem – e são mesmo – ligados umbilicalmente. E ela, sem dúvida, vive através deles. Sente-se isto quando o bailarino Pierre dialoga com a metrópole da sacada de sua sala, de onde observa não só o clima, os monumentos, a via pública, mas, principalmente, a vida íntima das pessoas. E se vê aprisionado em seu apartamento, condenado que está a viver nele fechado reflexivamente. Mas também quando o feirante passeia pelo gigantesco galpão-frigorífico, mostrando à modelo, que visita-o depois do desfile em plena madrugada, como Paris se conecta com o planeta, importando frutas, legumes e carnes de diversos países.


 


 



Esta geografia-Paris, vista através dos personagens, pontua todas as seqüências, tornando-a o principal personagem do filme, a exemplo da Manhattan de Woody Allen. A todo instante ela aparece interagindo com os personagens. É quase um hino à “cidade-luz”, com suas marcas registradas: Torre Eiffel, Montparnasse, baguette, que o bailarino Pierre decanta de sua sacada, enquanto a irmã Elise ajuda-o a contornar a angústia e escapar à depressão. Toda uma gama de estruturações arquitetônicas surge diante dele. E há espaço para que a planta da cidade se estenda à modernidade, acrescentando contribuições ao meio urbano. Uma arquitetura que não é tão só clássica, art-décor ou art-nouveaux, também se abre para novas experimentações preservando seu antigo perfil de prédios de poucos andares. Tanto que Pierre pode admirá-la sem interferência das tediosas torres de vidro e concreto, numa emocionante viagem noturna rumo ao desconhecido.


 


 


Paris molda os moradores e também é moldada por eles


 


 



Uma visão que torna os personagens seres de uma cidade que os molda, fazendo-os construir uma história à sua semelhança, enquanto também é por eles moldada. Klapisch não esquece de suas origens como cidade de imigrantes, de variadas cores e etnias. Também das diferenças regionais, antevistas na discrição feita pela dona da confeitaria (Karin Viard) às voltas com a seleção de uma nova balconista. Ela descreve o temperamento, a cultura e o comportamento das pessoas nascidas nas várias regiões do país, aceitando uma delas, de origem árabe. O entrecruzar de povos e locais se estende aos de fora, aos novos emigrados, com suas epidermes cada vez mais escuras, com seus problemas de adaptação e sonhos nem sempre realizados. Uma forma de Klapisch dizer, talvez, que pouco importa de onde as pessoas venham; elas estarão sempre querendo vir para Paris. Mesmo que o sonho acabe numa travessia em meio a uma tempestade no mar bravio. E ele, Klapisch, os reúne na festa que Elise dedica ao irmão, com seu modo próprio de dizer, sentir e seduzir o outro.


 


 



Com uma leveza difícil de equilibrar num filme de tal complexidade, Klapisch pega seus personagens e os individualiza; numa releitura de matrizes muito recicladas. Principalmente as do Hitchcock de “A Janela Indiscreta”. Da sacada de seu apartamento, tentando driblar o inevitável, Pierre vasculha a vida na rua e, notadamente, no prédio vizinho. Deixa-se seduzir pela beleza e o cotidiano da aluna de Roland sobre quem nada sabe. Um voyeur, sem dúvida, mas não daqueles cujo olhar doentio deixa antevê impossibilidades. Enquanto na obra do mestre inglês, o fotógrafo “Jeff” Jeffries (James Stewart) está imobilizado numa cadeira de rodas, Pierre tem liberdade de locomoção, porém a impossibilidade de dilatar seu tempo de vida o impede de aproximar-se de seu objeto de desejo. Há sempre a barreira, a impotência, o obstáculo psicológico, a impedi-los de concretizar seu intento. O desejo acaba sendo reflexo de uma época em que a pessoa o vive mais através do outro, do que por si próprio.


 


 



Seres de hoje estão condenados a projetar seu desejo de uma sacada


 


 



Hitchcock usa a lei para evitar o assassinato do objeto de desejo do fotógrafo, Klapisch, pelo contrário, fornece ao bailarino Pierre as informações necessárias à desmontagem de sua projeção. Ou estariam todos, sem exceção, condenados a projetar seu desejo da sacada ou da janela de seu apartamento, sendo impossível encontrar-se com o outro. E a barreira não é a rua, a praça ou a avenida ou mesmo o prédio, a incomunicabilidade é endêmica nos tempos atuais. Klapisch o ilustra bem no relacionamento entre o professor de história Roland e o relacionamento que ele desenvolve com sua aluna. Aqui a releitura da famosa seqüência da janela de “A Janela Indiscreta” se dá por meio do celular. Este objeto onipresente na vida de qualquer cidadão hoje, seja ele de que país for; em que continente estiver. Roland a segue pelos bares, salas, quartos, restaurantes, com suas declarações de amor virtuais. E ela se vê enredada por alguém cujo rosto desconhece.


 


 


Trata-se de uma bela releitura da Lola (Anouk Aimée), de Jacques Demy, perseguida por um inesperado amado. O quarentão (Omar Sharif) que tenta se desdobrar para atrair a jovem aluna para seu mundo e se vê numa competição insolúvel com o companheiro de seu objeto de desejo. Algo inevitável ocorre nestas reciclagens. Existem mais impossibilidades, não pela barreira de idade, sim pelo gênero de vida, de liberdades, de aceitar dividir e nada impor, pois então acabaria criando o próprio calvário. Dado que, nos tempos atuais, a liberdade de gênero criou espaços inimagináveis para mulher e ela o usa para exercer sua conquista, devendo quem a anseia tê-los em conta. As atrações são ditadas por carências, insuficiências, atrações mútuas – tais como as Elise com o maduro feirante. Eles vão aos poucos se entrelaçando, tornando próximas suas vidas até ocorrer o inevitável: eles se unem pela simples razão de precisarem um do outro. Nenhum romance, sinos ou declarações de amor da parte de um ou de outro.


 


 


Modelos buscam o real para escapar ao glamour


 


 



Estes contrapontos surgem ao longo de “Paris”, com naturalidade, em espaços onde transitam seres humanos normais. Não há sofisticação de figurinos, de grandes salões, de efervescências do grande mundo. Até as passarelas quando aparecem é para marcar o vazio que vem depois. As modelos são pessoas normais, necessitadas de um banho de realidade para se contrapor às luzes dos spots e ao faz-de-conta das molduras fashions (perfumes, sapatos, bolsas, cintos, casacos, vestidos) e o corredor imaginário da fama. Há grande vazio no pós-desfile. Klapisch ilustra-o na melhor seqüência do filme, ao fazer as modelos circularem pelo gigantesco frigorífico central, deslocadas, ansiosas por defrontar-se com a realidade que lhes escapa.


 



E o real se impõe porquanto elas só vêem o mundo através dos refletores, do avião ou das janelas dos hotéis onde estão hospedadas. Deslumbram-se então com o espaço não natural, das pessoas que vivem o cotidiano cheio de contradições, necessidades e longe das câmeras e dos spots. Chegam a ser fellineanas (vide 8 ½), desprovidas de glamour, só rostos e roupas. Andam por frios corredores entre carnes, frutas, legumes e verduras, em contato com os feirantes que as vê como são longe das câmeras.


 


 


São, portanto, releituras de várias matrizes, difíceis de delas escapar, ainda que, nos entrechos, Klapisch tente lhes dar um clima de frescor, de novo, de modernidade. Sua câmera enquadra seres deslocados, apegados à vida de forma a dela retirar o que ainda é possível. Caso de Philippe que, na meia idade, debate-se com Roland e encanta-se com a paternidade. Para ele é tudo novo, da reação do irmão ao tratamento que lhe era dado pelos pais, à chance de conviver com uma criança. Ou do próprio Pierre num momento crucial de sua vida, à beira de uma barreira intransponível, deslumbra-se com espaços, monumentos e luzes, interagindo com a cidade, dela retirando o prazer de viver. E envolvem o espectador numa teia que o faz flutuar, alegrar-se com as várias reciclagens de matrizes arrumadas de tal forma que lhe parecem modernas.


 


 


Velho é reciclado com certa leveza e frescor


 


 


É o tratamento que lhe foi dado por Klapisch que lhe permite deixar a sala de cinema com esta impressão. Personagens simpáticos, situações bem resolvidas, seqüências que fluem sem atropelos, cenas que decantam, permitindo-lhe absorver cada nuance e que muito contribuem para esta sensação de frescor. Um filme de pequenas emoções, dramas equilibrados e ambições de pessoas comuns. Nada de símbolos, psicodramas, embates e confrontos em que o outro sai arrasado. Klapisch pretende louvar, simplesmente, a vida, tendo Paris como centro.


 


 


A “novidade”, enfim, reside-se nisto e na releitura de matrizes de diversas épocas e estilos. Inexiste a radicalidade estética e conteudística da cinematografia francesa, criando uma nova maneira de contar uma história, a exemplo da velha nouvelle vague. Pelo menos dá para escapar à pasmaceira e decadência cinematográfica atual, viva hoje apenas numa e noutra obra e nas séries vistas pelo limitado público dos canais pagos. E longe, portanto, do grande público enclausurado nos realities-shows  que mais embotam a mente que divertem ou formam senso crítico.


 


 



“Paris” (“Paris”). Drama. França. 2008. 127 minutos. Direção: Cédrick Klapisch. Elenco: Juliette Binoche. Romain Duris, Fabrice Luchini, Albert Dupontel, François Cluzet, Karin Viard, Melanie Laurent.

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