Passos perdidos, passos reencontrados

Eu vivo, como os leitores desta coluna já se deram conta, no mundo dos livros. Saio dele como uma tartaruga que espicha a cabeça fora da carapaça, para comunicar aos habitantes dos outros mundos as notícias do mundo de cá, e volto a ele (ou a ela, a carapaça) com saudades das páginas em branco salpicadas de letras pretas. A notícia de agora é da leitura de Os Passos Perdidos (Carpentier, Alejo. Os Passos Perdidos. Trad. Marcelo Tápia. São Paulo. Ed. Martins Fontes, 2008).

Esse surpreendente romance do escritor cubano Alejo Carpentier conta a história de um jovem intelectual que é levado a percorrer as entranhas da selva em busca de um instrumento musical aborígene, que poderia estar no princípio de toda a música erudita desenvolvida pelo homem. Tudo isso urdido por uma elaborada linguagem poética a imitar o emaranhado de troncos, galhos e raízes da floresta amazônica.

Nessa busca, o amor, a amizade e a compreensão mais alargada sobre as várias formas de humanidade se vão interpondo no caminho da personagem, que terá de optar pela selva ou pela civilização a cada passo de sua jornada.

Interrompendo sua vida estável de profissional bem sucedido, esse intelectual é instado por seu ex-orientador da época de faculdade a retomar sua pesquisa interrompida. Aproveitando-se de oportunas férias, o intelectual decide atender o pedido, e lança-se a uma aventura que transformara sua forma de encarar o mundo, sua sensibilidade e sua vida.

No percurso de sua expedição, somando-se a outros personagens que se embrenham por paisagens surpreendentes, o intelectual descobre formas de viver muito diferentes daquelas encontradas na urbe civilizada. O mundo, enfim, é muito maior do que as ruas da cidade em que se mora, vive, trabalha e morre:

“Ao cabo de duas horas de navegação entre pedras, ilhas de pedras, promontórios de pedras, montes de pedras, que conjugam suas geometrias com uma diversidade de invenção que já deixou de nos assombrar, uma vegetação mediana, tremendamente cerrada – rigidez de gramíneas, dominada pela constante, em ondulação de dança, do macio dos bambus – substitui a presença da pedra pela interminável monotonia do verde fechado. Divirto-me com um jogo pueril tirado das maravilhosas histórias narradas, junto ao fogo, por Montsalvatje: somos Conquistadores que vamos em busca do Reino de Manoa.”

Essa feliz tradução de Marcelo Tápia preserva o estilo barroco de Alejo Carpentier que, nesse livro, desenvolve longos parágrafos como se fossem ramagens de vegetação cheia de volutas, de emaranhados e de exuberante folhagem. Por vezes, a linguagem se torna intrincada como nós de madeira, após o que uma sucessão de frases cheias de beleza lembra uma espetacular floração sintática e vocabular.

Quando o barco desce um curso d’água ignoto em meio à selva, a sensação de desorientação em face da profusão de braços de rios se instaura, com a ajuda de um abundante e rico vocabulário que, imitando a elevação das águas, faz desaparecer as referências e obriga o leitor, um tanto aturdido, a retomar a leitura a partir de um ponto anterior, no qual encontrará um personagem desorientado na selva a suplicar por socorro para retomar sua jornada.

Neste livro, o enredo é surpreendente e cheio de imprevistos, porém não em menor grau do que a linguagem, a converter o texto em verdadeiro poema – operação melhor percebida quando a leitura encadeia-se às vezes imitando-se um fluido igarapé, às vezes uma tumultuada corredeira.

Espero ter sido feliz na notícia de hoje, cujo objetivo era convencer alguns a viajar pelos rios intricados de Carpentier, rumo a uma Amazônia mágica. Agora, com licença, que preciso dar marcha-à-ré em meu pescoço, rumo ao interior de minha carapaça.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor